sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O futuro da Irmandade -RASHEED ABOU-ALSAMH


O Globo - 14/12/2012

Egípcios estão cansados
de tanta tensão política
e incerteza econômica


As batalhas acirradas e mortais nas ruas do Cairo entre apoiadores do presidente egípcio Mohamed Mursi e os membros da oposição nos últimos dez dias, que deixaram pelo menos sete mortos e mais de 400 feridos, são sinais de que os desacordos políticos estão ocorrendo de forma violenta, em vez de serem decididos pacificamente no parlamento e nas urnas. Mas o povo egípcio terá chance amanhã de aceitar ou não a nova Constituição em um referendo, que será tanto sobre a Carta em si como sobre o desempenho do regime Mursi até agora.

Os pobres egípcios estão cansados de tanta tensão política e incerteza econômica em quase dois anos de revolução, depois da derrubada do expresidente Hosni Mubarak em janeiro de 2011. Segundo país a entrar na Primavera Árabe, o Egito continua ainda hoje sem um parlamento e sem uma nova Constituição. As eleições parlamentares só podem ser realizadas depois de a nova Carta ser aprovada.

Mursi, ex-dirigente da Irmandade Muçulmana, tem tomado decisões impopulares, mal pensadas e apressadas. No final de novembro ele anunciou que, por meio de um decreto presidencial, qualquer decisão dele seria imune a qualquer revisão judicial, mesmo da Suprema Corte. Parecia um ato da era ditatorial de Mubarak ou de Anwar Sadat. A reação popular foi imediata, com a oposição gritando nas ruas contra o decreto. Na época eu entendia que Mursi se sentia acuado por elementos no Judiciário que querem fazer de tudo para não deixar a Irmandade e os islamistas ter sucesso na política, e por isso tinha que blindar o processo de produzir uma nova Constituição e novas eleições parlamentares para eleger membros de um parlamento que foi dissolvido por uma corte em junho. Mesmo assim, Mursi foi forçado a recuar pela reação pública, e extinguiu várias cláusulas daquele decreto.

Mursi está cometendo um erro estratégico e muito grave em não tentar incluir a oposição formada por liberais, secularistas, mulheres, jovens, cristãos e esquerdistas no processo de redigir uma nova carta constitucional. A Assembleia Constitucional, que redigiu a nova carta, tinha 100 membros no inicio dos seus trabalhos alguns meses atrás. Em pouco tempo, trinta desses membros, todos da oposição,
deixaram a assembleia em protesto contra a maioria islamista, alegando que suas preocupações estavam sendo ignorados pela maioria. Isso deixou a carta nas mãos dos islamistas, que adicionaram várias novas cláusulas no novo documento que, entre outras coisas, dizem que é o dever do Estado proteger a santidade da família egípcia, e que a universidade de Al-Azhar, o mais antigo centro de ensinamento islâmico no mundo, deverá ser consultada em assuntos de Sharia, ou lei islâmica no Egito.

Muitos egípcios e a imprensa ocidental ficaram alarmados, ao entender que o partido da Justiça e Liberdade queria tornar o Egito num novo Irã. Mas qualquer pessoa que conhece o Egito vai dizer que a maioria da população é muçulmana, conservadora e religiosa; que reza cinco dias por dia, vai à mesquita varias vezes por semana e que preza a vida familiar. Então eu acho essas preocupações um tanto exageradas, embora devam ficar sob olhar atento.

Vários comentaristas ocidentais insistiram em apontar que a nova Constituição egípcia não declara a igualdade das mulheres com os homens diante da lei e do Estado, como se no passado o Egito tivesse sido um paradigma de feminismo e liberdade de expressão durante os 60 anos de ditadura secular. O professor de Ciências Políticas na Universidade George Washington Nathan J. Brown apontou, em um artigo recente na revista “Foreign Affairs”, que a direção que o Egito vai tomar depende muito de comoa nova Carta será interpretada pelo parlamento, através de novas leis, e pelo Judiciário.

Um exemplo da tentativa do Estado de se impor à população é a lei que proibiu a prática de circuncisão feminina, promulgada inicialmente por decreto ministerial em 1959, até que finalmente em 1996 o então ministro da Saúde decretou proibição, exceto quando por razões médicas. Isso deixou uma brecha enorme para qualquer pessoa ignorar a lei, se quisesse. Em 2007 mais um decreto proibiu qualquer profissional da área médica, ou qualquer outra pessoa, de se envolver no procedimento. Infelizmente esses decretos não acabaram com a prática que continua firme, especialmente nas classes mais pobres e menos educadas.

A oposição tem estado desunida, o1 que tem favorecido Mursi e os islamistas. Por vários dias eles estiveram divididos na questão de ou votar “não” no referendo, ou boicotar o exercício completamente. Somente no dia 12 de dezembro, três dias antes do referendo, eles decidiram votar “não”. Vamos ver o que vai acontecer agora à Irmandade, que tem uma capacidade notável de organizar eleitores para comparecer às urnas.

É triste ver Mursi, que ficou preso por muitos anos durante o regime de Mubarak, e a Irmandade, que ficou banida no Egito desde quase quando foi formada em 1928, agir dessa maneira autocrática e ditatorial. Os manifestantes da Praça Tahrir não deram  suas vidas e olhos para isso. O novo Egito tem que incluir todos os egípcios, garantir a liberdade de expressão, de movimento, de agrupamento e não deixar nenhum ramo do governo, seja o Executivo, o Judiciário ou o Legislativo, ter poder absoluto. Senão teremos uma nova ditadura — desta vez, com um sabor islâmico.

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