Gustavo Werneck
Estado de Minas: 30/12/2012
Catas Altas e Nova Era – A mão do anjo parece atingir o céu. Com o braço erguido, ele se projeta no espaço, a quase 10 metros de altura, e impressiona quem visita o interior da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas, na Região Central, a 120 quilômetros de Belo Horizonte. A figura alada que ultrapassa a cimalha e toca o forro de madeira é parte do altar de São Miguel e Almas, o maior da igreja, e também de uma história passada em meados do século 18 que fascina e desperta, até hoje, o interesse de estudiosos, fiéis e turistas. Devido às dimensões do retábulo, duas irmandades religiosas – Santíssimo Sacramento e São Miguel e Almas – brigaram na época e o caso foi parar na Câmara de Vila Rica, atual Ouro Preto.
“Até o pai de Aleijadinho, o mestre de obras Manuel Francisco Lisboa, que era um ‘louvado’, ou perito, foi chamado para opinar e acalmar os ânimos. A polêmica alimentou a primeira grande discussão sobre estética no Brasil colonial e está registrada no livro Arquitetura religiosa barroca do Brasil, do francês Germain Bazin (1901–1990)”, diz o restaurador Adriano Ramos, pesquisador do tema. “Também participou da discussão o mestre Francisco Branco de Barros, representante da Irmanade do Santíssimo Sacramento. O problema maior foi que o retábulo ultrapassava o arco da capela lateral, destoando dos restantes”, acrescenta a arquiteta Selma Melo Miranda, professora da PUC Minas e especialista em arte colonial mineira. Construídos para receber os santos de devoção, os altares guardam segredos, mistérios e símbolos que realçam a grandeza do patrimônio de Minas e atiçam a curiosidade de quem os contempla.
Diante do altar de São Miguel e Almas, o titular da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, padre Armando Godinho, destaca a luminosidade do retábulo que contém a imagem do santo forte contra as artimanhas do demônio; as virtudes, entre elas a justiça; duas colunas laterais; crianças sobre quartelões (pilastras ornamentadas); Cristo crucificado e Nossa Senhora das Dores com seu manto roxo. “É como se São Miguel ajudasse a alma a se purificar levando-a para o céu”, diz padre Godinho, estudante de pós-graduação em história da arte. Mas por que esse altar é tão gigantesco?
Tudo começou no começo do arraial, no princípio do século 18, quando havia uma capelinha no lugar da atual matriz. Os integrantes da Irmandade de São Miguel e Almas teriam sido os primeiros a chegar à região, antes mesmo dos da Santíssimo Sacramento, considerada mais importante, e se encarregavam das celebrações religiosas e enterros, por exemplo. “Com a construção da igreja, começou a contenda sobre o altar”, explica o padre, lembrando que, na sequência, vieram outros grupos de devoção responsáveis pelos altares dedicados a Nosso Senhor dos Passos, Nossa Senhora da Boa Morte, Santo Antônio, Santana e São Gonçalo do Amarante.
“O altar de Nosso Senhor do Passos, a cargo da Irmandade do Santíssimo Sacramento, fica em frente ao de São Miguel e Almas e ambos foram sendo construídos ao mesmo tempo” conta o padre. “O problema é que o de São Miguel ultrapassou o padrão arquitetônico, sob protestos da outra associação religiosa. Não houve entendimento e o jeito foi reclamar em Vila Rica, pedindo que a obra fosse desmanchada”, completa. Mas, diante da beleza, as autoridades resolveram deixar como estava.
Num giro pelo interior da matriz, padre Godinho mostra o forro da nave com a madeira nua, “que deveria ter um céu pintado, com a mão do anjo o tocando”, e os altares sem policromia, num contraste com os demais. “Tudo indica que a escassez do ouro na região impediu o término do serviço. O altar-mor foi pintado rapidamente para abrir logo a igreja aos fiéis. Mais tarde, depois da confusão entre as irmandades, a de São Miguel e Almas teria ido embora e os cuidados com o altar ficado a cargo da do Santíssimo Sacramento”, revela.
Da janela de sua casa bicentenária, a viúva Gercina Emília de Souza, de 89 anos, contempla a matriz. “O altar de São Miguel e Almas é muito bonito, sempre cuidamos dele e do Santíssimo Sacramento”, diz Gercina. O templo, de onde se vê a Serra do Caraça, é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1939.
Em Nova Era, também na Região Central, a 130 quilômetros de BH, outro altar encanta e intriga. Na Igreja de São José da Lagoa, de 1743, há um retábulo com dois camarins (lugar onde ficam os santos): o primeiro, na parte superior, para Santana Mestra, e o de baixo ocupado pela imagem de São Francisco das Chagas. Segundo os especialistas, é o único desse tipo no país. “Foi construído assim por medida de economia, uma solução criativa do escultor”, diz o professor de educação patrimonial Elvécio Eustáquio da Silva, ressaltando que “só há um assim numa capela no Norte de Portugal”. Ele conta que a divisão chama a atenção de visitantes. “Mas essa característica continua um desafio, faltam estudos para dar uma explicação.”
Olhando o altar da igreja, tombada desde 1953, Elvécio pergunta: “Por que a imagem de Santana Mestra está sobre a de São Francisco?” A dúvida decorre da maioria de elementos referentes ao santo, entre eles as insígnias, como a cruz, a mão de Cristo e as chagas em dourado. Já no altar de Nossa Senhora do Rosário há elementos não explicados. “Aqui estão imagens de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito, que não correspondem à Paixão de Cristo. O curioso é que há dois cravos e a cruz gravados no retábulo”, afirma. “Ainda há muito para se estudar. Os altares mostram a riqueza do fazer artístico”, avalia Selma Miranda. Ela lembra que a falta de documentação deixa lacunas. “Há fatos, relativos à arte, que foram bem estudados pelo Iphan nas décadas de 1940 e 1950 e são as referências que se tem até hoje, demandando novas pesquisas”, afirma.
“Até o pai de Aleijadinho, o mestre de obras Manuel Francisco Lisboa, que era um ‘louvado’, ou perito, foi chamado para opinar e acalmar os ânimos. A polêmica alimentou a primeira grande discussão sobre estética no Brasil colonial e está registrada no livro Arquitetura religiosa barroca do Brasil, do francês Germain Bazin (1901–1990)”, diz o restaurador Adriano Ramos, pesquisador do tema. “Também participou da discussão o mestre Francisco Branco de Barros, representante da Irmanade do Santíssimo Sacramento. O problema maior foi que o retábulo ultrapassava o arco da capela lateral, destoando dos restantes”, acrescenta a arquiteta Selma Melo Miranda, professora da PUC Minas e especialista em arte colonial mineira. Construídos para receber os santos de devoção, os altares guardam segredos, mistérios e símbolos que realçam a grandeza do patrimônio de Minas e atiçam a curiosidade de quem os contempla.
Diante do altar de São Miguel e Almas, o titular da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, padre Armando Godinho, destaca a luminosidade do retábulo que contém a imagem do santo forte contra as artimanhas do demônio; as virtudes, entre elas a justiça; duas colunas laterais; crianças sobre quartelões (pilastras ornamentadas); Cristo crucificado e Nossa Senhora das Dores com seu manto roxo. “É como se São Miguel ajudasse a alma a se purificar levando-a para o céu”, diz padre Godinho, estudante de pós-graduação em história da arte. Mas por que esse altar é tão gigantesco?
Tudo começou no começo do arraial, no princípio do século 18, quando havia uma capelinha no lugar da atual matriz. Os integrantes da Irmandade de São Miguel e Almas teriam sido os primeiros a chegar à região, antes mesmo dos da Santíssimo Sacramento, considerada mais importante, e se encarregavam das celebrações religiosas e enterros, por exemplo. “Com a construção da igreja, começou a contenda sobre o altar”, explica o padre, lembrando que, na sequência, vieram outros grupos de devoção responsáveis pelos altares dedicados a Nosso Senhor dos Passos, Nossa Senhora da Boa Morte, Santo Antônio, Santana e São Gonçalo do Amarante.
“O altar de Nosso Senhor do Passos, a cargo da Irmandade do Santíssimo Sacramento, fica em frente ao de São Miguel e Almas e ambos foram sendo construídos ao mesmo tempo” conta o padre. “O problema é que o de São Miguel ultrapassou o padrão arquitetônico, sob protestos da outra associação religiosa. Não houve entendimento e o jeito foi reclamar em Vila Rica, pedindo que a obra fosse desmanchada”, completa. Mas, diante da beleza, as autoridades resolveram deixar como estava.
Num giro pelo interior da matriz, padre Godinho mostra o forro da nave com a madeira nua, “que deveria ter um céu pintado, com a mão do anjo o tocando”, e os altares sem policromia, num contraste com os demais. “Tudo indica que a escassez do ouro na região impediu o término do serviço. O altar-mor foi pintado rapidamente para abrir logo a igreja aos fiéis. Mais tarde, depois da confusão entre as irmandades, a de São Miguel e Almas teria ido embora e os cuidados com o altar ficado a cargo da do Santíssimo Sacramento”, revela.
Da janela de sua casa bicentenária, a viúva Gercina Emília de Souza, de 89 anos, contempla a matriz. “O altar de São Miguel e Almas é muito bonito, sempre cuidamos dele e do Santíssimo Sacramento”, diz Gercina. O templo, de onde se vê a Serra do Caraça, é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1939.
Em Nova Era, também na Região Central, a 130 quilômetros de BH, outro altar encanta e intriga. Na Igreja de São José da Lagoa, de 1743, há um retábulo com dois camarins (lugar onde ficam os santos): o primeiro, na parte superior, para Santana Mestra, e o de baixo ocupado pela imagem de São Francisco das Chagas. Segundo os especialistas, é o único desse tipo no país. “Foi construído assim por medida de economia, uma solução criativa do escultor”, diz o professor de educação patrimonial Elvécio Eustáquio da Silva, ressaltando que “só há um assim numa capela no Norte de Portugal”. Ele conta que a divisão chama a atenção de visitantes. “Mas essa característica continua um desafio, faltam estudos para dar uma explicação.”
Olhando o altar da igreja, tombada desde 1953, Elvécio pergunta: “Por que a imagem de Santana Mestra está sobre a de São Francisco?” A dúvida decorre da maioria de elementos referentes ao santo, entre eles as insígnias, como a cruz, a mão de Cristo e as chagas em dourado. Já no altar de Nossa Senhora do Rosário há elementos não explicados. “Aqui estão imagens de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito, que não correspondem à Paixão de Cristo. O curioso é que há dois cravos e a cruz gravados no retábulo”, afirma. “Ainda há muito para se estudar. Os altares mostram a riqueza do fazer artístico”, avalia Selma Miranda. Ela lembra que a falta de documentação deixa lacunas. “Há fatos, relativos à arte, que foram bem estudados pelo Iphan nas décadas de 1940 e 1950 e são as referências que se tem até hoje, demandando novas pesquisas”, afirma.
Vestígios da maçonaria
Especialistas defendem estudos para confirmar se compasso e esquadro encontrados no Santuário de Santa Luzia, na Grande BH, têm relação com a iconografia maçônica
Gustavo Werneck
Santa Luzia e Mariana – No Santuário de Santa Luzia, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o enigma está no altar de São José. Em 1989, durante restauração do templo, tombado pelo município e pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG), foram encontrados, na parte de trás do retábulo, um compasso e um esquadro esculpidos na madeira e em policromia dourada, que estariam relacionados à maçonaria. “Já está passando da hora de se fazer uma pesquisa profunda para esclarecer essa história”, defende a arquiteta e professora Selma Melo Miranda, lembrando que o assunto despertou o interesse da Promotoria de Defesa do Patrimônio Histórico e Turístico de Minas.
É possível ver com nitidez a talha com o esquadro que, para os maçons, representa retidão e integridade de caráter, e o compasso, símbolo de equilíbrio, justiça e vida correta, já que foi deixada uma passagem sob a mesa do altar. Marco Aurélio Fonseca, diretor do Museu Histórico Aurélio Dolabella e responsável pelo inventário da igreja, informa que não há pesquisas conclusivas, principalmente sobre a época em que eles teriam sido esculpidos.
Segundo a tradição oral, diz Marco Aurélio, a madeira com o esquadro e o compasso pertenceriam ao forro do interior do camarim, depois ocultado em razão da ligação com a iconografia maçônica. “Como os entalhes do trono de São José são semelhantes ao altar-mor de Santa Luzia, é possível que ele estivesse à mostra no século 18”, afirma. No século seguinte, a exposição numa igreja católica criaria problemas para os padres, já que a bula Syllabus, editada em 1864 pelo papa Pio IX (1792-1878), proibia as relações da Igreja com a maçonaria. “Os símbolos poderiam também estar relacionados ao ofício de São José, que era carpinteiro, mas tudo vai demandar muita investigação”, acredita o diretor do museu.
Especificamente sobre o altar de São José, Marco Aurélio conta que as características estilísticas e as referências relacionadas à construção da igreja permitem dizer que ele foi feito entre 1750 e 1770. “A isso se soma a informação do professor e poeta Tibúrcio de Oliveira, já falecido, e provavelmente baseada em antigos livros da igreja, de que entre 1760 e 1776 o sargento-mor português Joaquim Pacheco Ribeiro, um dos promotores da construção da matriz, teria contratado ‘os serviços de moldura e de entalhe’ dos artistas Felipe Vieira e Francisco de Lima Cerqueira”, afirma.
Corpo e alma Em Mariana, primeira vila, cidade e diocese de Minas, há uma curiosidade que vale a visita. A Igreja de São Francisco, do século 18, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, apresenta uma bela surpresa, que aguça os sentidos. Do lado direito do templo, localizado na Praça Minas Gerais, estão os altares com os santos que curam “as dores do corpo” – São Luís de França, São Lázaro, São Sebastião, São Manoel e São Roque – e, do esquerdo, aqueles que curam as “da alma” – Santa Clara, São Vicente Ferrer, Santo Antônio, Santa Rita, Santa Rosa de Viterbo e Santa Isabel de Portugal. Atualmente, a igreja está fechada devido ao estado de deterioração. Só quando houver segurança e obras concluídas é que moradores e visitantes poderão apreciar mais essa faceta do patrimônio de Minas.
NAVIO OU TEATRO?
É possível ver com nitidez a talha com o esquadro que, para os maçons, representa retidão e integridade de caráter, e o compasso, símbolo de equilíbrio, justiça e vida correta, já que foi deixada uma passagem sob a mesa do altar. Marco Aurélio Fonseca, diretor do Museu Histórico Aurélio Dolabella e responsável pelo inventário da igreja, informa que não há pesquisas conclusivas, principalmente sobre a época em que eles teriam sido esculpidos.
Segundo a tradição oral, diz Marco Aurélio, a madeira com o esquadro e o compasso pertenceriam ao forro do interior do camarim, depois ocultado em razão da ligação com a iconografia maçônica. “Como os entalhes do trono de São José são semelhantes ao altar-mor de Santa Luzia, é possível que ele estivesse à mostra no século 18”, afirma. No século seguinte, a exposição numa igreja católica criaria problemas para os padres, já que a bula Syllabus, editada em 1864 pelo papa Pio IX (1792-1878), proibia as relações da Igreja com a maçonaria. “Os símbolos poderiam também estar relacionados ao ofício de São José, que era carpinteiro, mas tudo vai demandar muita investigação”, acredita o diretor do museu.
Especificamente sobre o altar de São José, Marco Aurélio conta que as características estilísticas e as referências relacionadas à construção da igreja permitem dizer que ele foi feito entre 1750 e 1770. “A isso se soma a informação do professor e poeta Tibúrcio de Oliveira, já falecido, e provavelmente baseada em antigos livros da igreja, de que entre 1760 e 1776 o sargento-mor português Joaquim Pacheco Ribeiro, um dos promotores da construção da matriz, teria contratado ‘os serviços de moldura e de entalhe’ dos artistas Felipe Vieira e Francisco de Lima Cerqueira”, afirma.
Corpo e alma Em Mariana, primeira vila, cidade e diocese de Minas, há uma curiosidade que vale a visita. A Igreja de São Francisco, do século 18, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, apresenta uma bela surpresa, que aguça os sentidos. Do lado direito do templo, localizado na Praça Minas Gerais, estão os altares com os santos que curam “as dores do corpo” – São Luís de França, São Lázaro, São Sebastião, São Manoel e São Roque – e, do esquerdo, aqueles que curam as “da alma” – Santa Clara, São Vicente Ferrer, Santo Antônio, Santa Rita, Santa Rosa de Viterbo e Santa Isabel de Portugal. Atualmente, a igreja está fechada devido ao estado de deterioração. Só quando houver segurança e obras concluídas é que moradores e visitantes poderão apreciar mais essa faceta do patrimônio de Minas.
NAVIO OU TEATRO?
Basta viajar para encontrar – e tentar desvendar – outros mistérios e particularidades dos altares das igrejas de Minas. De acordo com informações do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG), a Matriz de Santo Antônio, do século 18, de Itacambira, no Norte de Minas, tem um altar-mor sui generis, inspirado na proa de um navio ou palco de teatro (foto). “Todo mundo que vem aqui fica impressionado”, diz o titular da paróquia, padre Gilmar Soares Martins. Na Igreja de Penha de França, em Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha, o altar também parece palco. Já na Igreja de Santa Efigênia, no Bairro Alto da Cruz, em Ouro Preto, na Região Central, construída pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de Santa Efigênia, há anjos mulatos, símbolos africanos e um papa mulato.
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