CRÍTICA
Crônicas da vida de Woody Guthrie
Associated Press |
Woody Guthrie, cujo centenário se celebrou em 2012, em foto de 1944 |
Três livros, entre eles uma autobiografia, reconstituem a vida de Woody Guthrie, ícone da música folk americana e fonte de inspiração para artistas como Bob Dylan. As obras enfatizam sua infância pobre, as andanças de uma ponta a outra dos EUA e a militância como compositor de protesto durante a Grande Depressão e a 2ª Guerra.
Vagabundo, peregrino, agitador, comunista, vidente, mulherengo, pintor, poeta, cantor: um amplo rol de rótulos tenta abarcar a personalidade de Woody Guthrie (1912-67). Não só nos Estados Unidos, que ele cruzou levando seu violão, mas mundo afora, eventos lembraram neste ano o centenário desse andarilho que se tornaria, talvez, o mais engajado artista norte-americano do século passado.
Hoje conhecido sobretudo por "This Land is Your Land" -"esta terra é sua terra", composição que, retomada nos anos 1960 como canção de protesto, tornou-se uma espécie de hino de seu país-, Guthrie influenciou gerações de músicos folk que se tornaram muito mais famosos do que ele, como Bob Dylan e Joan Baez.
Carregando sob o apelido com que se tornou célebre o nome de Woodrow Wilson -homenagem feita pelo pai, um ex-caubói e político democrata local, àquele que seria o presidente do país entre 1913 e 1921- ele desde pequeno tratava de deixar sua marca no mundo. Ou, pelo menos, em troncos de árvores e bancos escolares, nos quais costumava entalhar os dizeres: "W. G. Garoto de Okemah, nascido em 1912".
O declínio da cidadezinha no interior de Oklahoma, engrandecida nos anos 1920 pela descoberta de petróleo e jogada no centro da pobreza que se abateria sobre os EUA na década seguinte, fez com que, adolescente ainda, Woody Guthrie pegasse a estrada.
MIGALHAS
Buscando o sonho da Califórnia dourada, viveu de migalhas, ganhando centavos pelas músicas que cantava acompanhado de seu violão, de um canto a outro do país. Sua parada mais permanente, porém, sempre foi Nova York -não por acaso, a cidade motiva um dos mais recentes livros lançados na esteira das homenagens ao trovador dos oprimidos.
"My Name is New York" [Woody Guthrie's Archives/ powerHouse Books, 100 págs.,
R$ 37,60] -também o título de uma canção do músico- foi concebido por uma das filhas de Woody, Nora, como um guia de caminhadas para que o fã encontre na cidade desde os prédios onde o ídolo viveu e se apresentou até o local onde suas cinzas foram jogadas, numa praia da península de Coney Island.
Ainda que belamente editado, cheio de fotos históricas e fac-símiles, o guia não é a porta de entrada ideal para a vida e obra de
Guthrie. Seus textos curtos e cheios de referências a músicas e a outros trabalhos do compositor são dirigidos aos fãs de carteirinha.
Ao neófito, aquele que tenha chegado a Guthrie por vias transversas, descobrindo-o por meio de músicos que receberam sua influência, é mais proveitoso buscar outros caminhos, garimpando em obras não tão recentes, mas que fogem do culto à personalidade.
Uma boa primeira parada é ler Woody por ele mesmo, mergulhando em "Bound for Glory" [Plume, 320 págs., R$ 46,50]. Nessa autobiografia, publicada originalmente em 1943, ele conta sua infância e adolescência, relembra o tempo em que vagueou sem destino e sobrevoa seus primeiros encontros com o sucesso e as promessas de fortuna -que não se configuraram, pois vinham sempre casadas com exigências para mudar seu estilo.
O título, que significa "destinado à glória", pareceria revelar uma tendência do autor a delírios de grandeza. É um engano, no entanto, que se esclarece logo no começo do livro: a expressão foi pinçada de versos cantados por vagabundos que, como ele, buscavam melhor sorte, viajando clandestinamente em vagões de trem.
É num deles que Woody começa a sua história. "Nós nos empilhávamos, um sobre os outros. Fazíamos uns aos outros de travesseiro. Dava para sentir o fedor amargo de suor que empapava minha camisa, minhas calças e as roupas molambentas e sujas dos outros caras".
O universo de desesperados que fugiam da miséria, às vezes conseguindo vagas temporárias e mal pagas como boias-frias nas plantações californianas, é o mesmo descrito com maestria em "Vinhas da Ira", de John Steinbeck (1902-68), cujos caminhos cruzaram os de Guthrie várias vezes nos primeiros anos da carreira do cantor.
Do vagão sórdido, Woody volta ao passado para narrar sua infância de pobreza e tragédias. Um incêndio destruiu a casa da família. Mais tarde, Clara, sua amada irmã mais velha, morreu com terríveis queimaduras em um acidente doméstico de origem nebulosa.
A mãe, Nora, de quem ouvia canções tradicionais cantadas em tom nasalado, morreu abandonada em um hospício. Sua fala incompreensível e súbitos movimentos descoordenados, interpretados como demonstrações de loucura, eram sintomas do mal de Huntington -hereditária, essa doença degenerativa que afeta o sistema nervoso central seria também a causa da morte de Woody e de duas de suas filhas do primeiro casamento.
As desgraças acabaram por dividir a família. Pai e filhos restantes tomaram cada um seu rumo. Woody encontrou o seu na música e na militância política, cantando a vida e o trabalho dos homens que construíam o país. "Bound for Glory" é um documento dessa jornada e, apesar da simplicidade e do tom direto de sua escrita, saltam do livro, como de suas canções, frases memoráveis.
PRECOCE
Guthrie tinha apenas 31 anos quando escreveu sua autobiografia. Por sua natureza precoce, ela se configura como um relato parcial e insuficiente, levando o leitor a procurar outras fontes. Uma das mais saborosas é "Woody Guthrie: A Life" [Dell, 480 págs., R$ 58,10], escrita em 1980 pelo repórter Joe Klein, que ganharia fama em 1996 por "Cores Primárias", romance calcado nos bastidores da primeira campanha presidencial de Bill Clinton.
Antes de começar o trabalho, Klein pouco ou nada conhecia sobre o músico. Interessou-se por ele quando fez, para revista "Rolling Stone", um perfil de Arlo, filho de Guthrie e, como o pai, cantor e compositor de protesto.
Klein produziu um retrato minucioso baseado em pesquisas e profícuas entrevistas com parceiros e parentes do artista.
Especialmente interessantes são os relatos da militância de Woody -nos tempos da Segunda Guerra (1939-45), ele escreveu em seu violão: "This machine kills fascists" (esta máquina mata fascistas). O instrumento certamente não matava ninguém, mas acompanhava canções em homenagem aos heróis da batalha: uma das músicas de Guthrie é um tributo a Liudmila Pavlichenko, atirador de elite do Exército soviético no conflito mundial. O melhor, porém, vem das centenas de cartas escritas por Woody e guardadas fielmente por Marjorie Greenblatt Mazia -segunda das três mulheres de Guthrie, que teve oito filhos.
Bailarina da companhia de Marta Graham, Mazia se tornaria mãe de Arlo, Nora e Joady, além de Cathy, a primogênita, que morreu garotinha depois de um incêndio na casa dos Guthrie em Nova York.
O livro segue a ordem cronológica, indo da apresentação dos antepassados do artista à discreta cerimônia familiar em que as cinzas de Guthrie foram jogadas ao mar.
Fala dos amores frustrados, das paixões arrebatadoras, das brigas com amantes e ex-mulheres, do sofrimento com a doença que vagarosamente o destruía. Mostra a gênese das principais obras de Woody e comentários que o cantor fazia sobre seu próprio trabalho.
No caminho, traça um panorama da política e da economia dos Estados Unidos, dos anos 1920 ao pós-Guerra, passando pelas atividades do Partido Comunista, a construção das grandes centrais sindicais, o macarthismo e o período da Guerra Fria. No âmbito cultural, viaja ainda mais longe, chegando aos meados dos anos 1960 e ao encontro de Bob Dylan com Guthrie, já quase moribundo.
Dylan, talvez o herdeiro mais notável de Guthrie, por várias vezes visitou seu ídolo no Brooklyn State Hospital -uma das paradas mencionadas no guia "My Name is New York". O livro de Nora Guthrie merece ser revisitado com carinho depois que o leitor tiver feito da vida de Woodie Guthrie parte da sua própria, embalado por "Bound for Glory" e "A Life".
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