quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Ouro negro [Moacir Santos]

FOLHA DE SÃO PAULO

Ouro negro
Morto em 2006, compositor Moacir Santos ganha primeira biografia, disco de inéditas e reedição de seu LP mais raro
Acervo Moacir Santos
Moacir Santos (em pé, ao centro) e sua big band em Los Angeles na década de 1970
Moacir Santos (em pé, ao centro) e sua big band em Los Angeles na década de 1970
LUCAS NOBILEDE SÃO PAULOHá menos de dois meses, a Tracks, loja de discos localizada na Gávea, no Rio, vendeu o LP "Coisas", de Moacir Santos, por R$ 3.200.
Lançado em 1965 e hoje objeto de colecionadores, o álbum do compositor pernambucano ficará mais acessível no começo de 2013, quando a Polysom lançará uma edição em vinil que custará entre R$ 70 e R$ 100.
Mesmo antes de o arranjador, maestro e instrumentista morrer aos 80 anos, em 2006, sua obra já era resgatada.
O início da "reapresentação" de Moacir ao público brasileiro se deu em 2002, quando Mario Adnet e Zé Nogueira produziram e arranjaram o CD duplo "Ouro Negro", interpretando o repertório do músico que se mudara para os EUA em 1967.
Para o próximo ano, quem prepara novidades relativas ao universo de Moacir é a flautista Andrea Ernest Dias.
Além de lançar, com seu Trio 3-63 (Paulo Braga, piano; Marcos Suzano, percussão), um disco com três temas inéditos do compositor, ela procura editora para publicar aquela que seria a primeira biografia (histórica e analítica) de Moacir, o compositor que não foi um só, foi tantos, como lhe eternizou Vinicius de Moraes no clássico "Samba da Bênção", de 1963.

    Maestro desprezou letra de Vinicius, revela pesquisa
    Tese de doutorado de Andrea Ernest Dias traz descobertas sobre Moacir Santos
    Autora, que teve acesso a manuscritos inéditos do acervo do músico pernambucano, busca editora para publicação
    DE SÃO PAULOA "bênção" de Vinicius de Moraes a Moacir Santos foi imortalizada nos versos do samba com Baden Powell. No cotidiano, a devoção do poeta minguou em 1964.
    Moacir não gostara da letra de Vinicius, "sensualizada demais", para aquela que se tornaria sua música mais conhecida, "Nanã (Coisa nº 5)". A parceria coube, então, a Mário Telles.
    A negativa de Moacir a Vinicius é uma das passagens contadas no trabalho "Moacir Santos, ou os Caminhos de um Música Brasileiro", resultado da tese de doutorado defendida por Andrea Ernest Dias em 2010 na Universidade Federal da Bahia.
    O volume, escrito pela flautista que tocou nos discos que reintroduziram Moacir ao Brasil, "Ouro Negro" e "Choros e Alegria", ajuda a entender quem é essa figura cultuada no meio musical brasileiro e americano, já que o maestro morou nos EUA de 1947 a 2006, ano de sua morte.
    Chamada por Moacir de "afilhada" e "Odettinha" -em referência a sua mãe, a também flautista Odette Ernest Dias, que conviveu com o maestro na Rádio Nacional-, Andrea teve acesso ao material deixado por Moacir, no acervo guardado por seu único filho, Moacir Santos Jr., 63, na Califórnia.
    "O Moacir Jr. foi generoso. Era vontade do pai dele ter uma biografia, anotava muitas coisas, tinha essa preocupação", diz a autora.
    Com análises musicais, a pesquisa trata dos estudos de Moacir com Guerra-Peixe e Joachim Hans Koellreutter, da herança recebida de Pixinguinha e de Abigail Moura, da Orquestra Afro-Brasileira.
    Sem esquecer do Moacir como formador, professor de Baden Powell, Sergio Mendes, Dori Caymmi, João Donato, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Wilson das Neves.
    Há também um capítulo destinado à trajetória do músico nos EUA, onde gravou três LPs pelo selo Blue Note.
    CINEMA E NOVAS COISAS
    A pesquisa trata ainda dos trabalhos de Moacir no cinema na década de 1960. O mais importante, a trilha de "Ganga Zumba", de Cacá Diegues, embrião do disco mais cultuado de Moacir, "Coisas".
    A autora analisa a concepção das "coisas" e, com manuscritos, revela, por exemplo, que uma "Coisa nº 11" chegou a ser esboçada, mas não se desenvolveu.
    Ainda no cinema, "Amor no Pacífico" abriu portas nos EUA para que o músico trabalhasse com Henri Mancini e Lalo Schifrin.
    "Ele não dizia sim nem não, apenas ria", diz Mario Adnet sobre o trabalho do maestro como ghost-writer de Schifrin na trilha de "Missão Impossível". "Pode ser especulação, mas tem muita coisa com a cara do Moacir ali", completa Zé Nogueira.
    "MUACY"
    Só em 1982, Moacir retornou a Flores do Pajeú (PE) em busca de suas origens. Nascido em 1926, ele tinha apenas 3 anos quando sua mãe morreu e seu pai o abandonou. Educado por uma família tradicional, aos 14 bateu perna pelo Nordeste e aprendeu a tocar diversos instrumentos.
    No retorno a Flores, aos 66 anos, descobriu o registro de batismo com seu nome grafado como "Muacy". Não à toa, este será o título do disco do Trio 3-63, de Andrea, que sai no primeiro semestre do ano que vem com as inéditas "Samba Tango", "The Beautiful Life" e "Love Go Down", de Moacir.

      ANÁLISE
      Compositor de "Coisas" é gênio musical que o Brasil demorou muito a reconhecer
      COLABORAÇÃO PARA A FOLHABastava ver as expressões de surpresa nos rostos das plateias dos primeiros concertos em homenagem a Moacir Santos, no início dos anos 2000, para confirmar que a obra desse compositor e maestro era até então conhecida por poucos, inclusive no Brasil.
      Lançado em 1965, o álbum "Coisas" (que só ganhou edição em CD, por incrível que pareça, já em 2005) reúne algumas de suas obras-primas.
      Moacir compôs e arranjou as dez faixas. Bem-humorado, decidiu batizá-las de "coisas", diferenciando-as apenas por números.
      O impacto de sua inventiva concepção musical já surge na faixa de abertura.
      Calcada em ritmos afros, que remetem às raízes negras da música popular brasileira, a encantatória "Coisa nº 4" prepara o ouvinte para "Coisa nº 5" -hoje a composição mais popular de Moacir, que se tornou a canção "Nanã" ao receber a letra de Mário Telles.
      A singela valsa-jazz "Coisa nº 2", a melancolia da sofisticada "Coisa nº 9", a sinuosa melodia de "Coisa nº 6", que o cantor Geraldo Vandré veio a letrar e a gravar como "Dia de Festa", ou ainda o jazzístico samba "Coisa nº 7", são outras belezas desse álbum antológico.
      O disco só retornou ao mercado graças à repercussão de "Ouro Negro" -o CD duplo de releituras de composições de Moacir, que o arranjador Mário Adnet e o saxofonista Zé Nogueira produziram no ano de 2001.
      No texto incluído na primeira edição de "Coisas" pelo selo Forma, o produtor Roberto Quartin sintetizou seu valor histórico.
      "Trata-se de um músico negro escrevendo música negra e não um garoto de Ipanema contando as tristezas da favela ou de um carioca, que nunca foi a Petrópolis, a enriquecer o cancioneiro nordestino", anotou.
      Não foi à toa que o jazzista Wynton Marsalis comparou nosso pernambucano ao fenomenal Duke Ellington, seu grande ídolo. Moacir Santos é um gênio musical que o Brasil demorou muito a reconhecer.

        FRASES
        "Moacir tem uma importância fundamental, mostrou um caminho novo. Devo muito a ele, ao Tom Jobim e ao Luiz Eça"
        DORI CAYMMI
        compositor e violonista
        "A maneira com que ele colocava as frases nos acordes, que harmonizava, era complexa. Criou um estilo rítmico só dele, impressionante"
        SERGIO MENDES
        compositor e pianista
        "Éramos vizinhos em Los Angeles. Ele sempre foi um grande maestro, primava pela simplicidade e pela brasilidade"
        JOÃO DONATO
        compositor e pianista
        "O álbum 'Coisas' não tem preço, é afro, jazzístico. É uma das grandes coisas que se fizeram no Brasil em forma de disco"
        CARLOS LYRA
        compositor e violonista
        "Moacir está no mesmo patamar do Tom [Jobim]. Essa dualidade de estilos foi excelente para a formação da gente, da bossa nova"
        ROBERTO MENESCAL
        compositor e violonista
        "A trilha dele para 'Ganga Zumba' é uma das mais bonitas e pertinentes do cinema brasileiro, com uma grande modernidade"
        CACÁ DIEGUES
        cineasta
        "Aprendi tudo com ele, nas aulas e tocando em bailes e na Rádio Nacional. Na música dele não tem nada errado, nada se choca"
        WILSON DAS NEVES
        compositor e baterista
        "Gosto dos choros, modernos, que ele compôs. Depois do 'Ouro Negro', há uma geração resolvida a fazer música 'à vera'"
        NEI LOPES
        compositor, escritor e pesquisador

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