terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Retrato do pós-familismo

FOLHA DE SÃO PAULO

Relatório global prevê o fim da família e a escalada do individualismo; brasileiros discordam
Lucas Lima/Folhapress
As fotos desta reportagem foram manipuladas por Herman Tacasey e Edson Sales. A inspiração foi otrabalho desenvolvido pelos fotopintores brasileiros. Comum no início do século 20, a fotopintura erausada para tornar mais "reais" os retratos em preto e branco dos álbuns de família: imperfeições eram corrigidas e roupas, inventadas
As fotos desta reportagem foram manipuladas por Herman Tacasey e Edson Sales. A inspiração foi otrabalho desenvolvido pelos fotopintores brasileiros. Comum no início do século 20, a fotopintura erausada para tornar mais "reais" os retratos em preto e branco dos álbuns de família: imperfeições eram corrigidas e roupas, inventadas
JULIANA VINESDE SÃO PAULOO "Admirável Mundo Novo" imaginado por Aldous Huxley está perto de virar realidade para o demógrafo americano Joel Kotkin, autor do relatório internacional "A Ascenção do Pós-Familismo".
Publicado em 1932, o livro de Huxley pintava uma era na qual laços de parentesco eram desencorajados e as palavras "pai" e "mãe", ditas com constrangimento.
Para Kotkin, as mudanças demográficas das últimas décadas não deixam dúvidas: "Já vejo semelhanças com a ficção: a paternidade está desaparecendo e as pessoas se identificam mais com a classe a que pertencem do que com a família", disse o demógrafo à Folha. Ele define pós-familismo como uma sociedade centrada no indivíduo.
Países ricos estão na dianteira desse fenômeno mundial de múltiplas causas: econômicas (o custo de ter filhos subiu), culturais (a mulher quer ter uma carreira antes de ser mãe) e políticas (falta de incentivos à maternidade). "O pós-familismo é crítico por resultar de muitas tendências. No Japão, o custo de vida é alto. No Irã, os filhos são um luxo", ilustra Kotkin.
A maior parte do levantamento, que envolveu cinco pesquisadores, três centros de estudo e dados de todos os continentes, foi feita no leste asiático, região de culturas centradas na família. É bem lá que o pós-familismo cresce rápido. Segundo o relatório, um quarto das mulheres do leste asiático ficarão solteiras até os 50 anos e um terço delas não terão filhos.
A queda na fecundidade é uma tendência sem volta inclusive no Brasil. Hoje, as brasileiras têm, em média, 1,9 filho; em 1980, a média era 4,4.
Mas, para especialistas brasileiros, o termo "pós-familismo" é apocalíptico demais. Se a família margarina (aquela com apenas pai, mãe e filhos) já não é mais dominante, novos arranjos proliferam.
"Aumentaram as famílias monoparentais, com apenas pai ou mãe, e os casais sem filhos", diz José Eustáquio Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE.
A demógrafa Simone Wajnman, da UFMG, analisou dados do Censo 2010 recém-publicados e descobriu que a família estendida, a que inclui parentes além do núcleo principal, já corresponde a 26% dos domicílios.
A família está longe de morrer, diz a socióloga Maria Coleta de Oliveira, da Unicamp. O que há é mais chance de escolha. "Não há um nome para esse momento. A diversidade será cada vez maior."
VÍNCULO DE SANGUE
A futuróloga Rosa Alegria, pesquisadora de tendências da PUC-SP, acredita que se está no meio do caminho. "Ainda não há retrato revelado. Mas é certo que a família tradicional é passado", diz, arriscando sua definição: "Família foi vínculo sanguíneo; hoje é um grupo com interesses comuns. No futuro, pode ser um grupo de amigos".
Para o IBGE, família ainda designa pessoas sob o mesmo teto. A classificação não contabiliza casos de guarda compartilhada ou de casais que moram separados. "Já há uma recomendação da ONU para que os critérios de contagem mudem. Pensamos nisso, mas talvez para os próximos cinco anos", diz Gilson Matos, estatístico do IBGE.
Se o pós-familismo não é consenso, o crescimento do individualismo é. "As pessoas preenchem suas vidas com bens de luxo e alta escolarização. Há uma pressão social pelo investimento pessoal", diz Ana Amélia Camarano, pesquisadora do Ipea.
Esse individualismo é resultado do próprio modelo de família tradicional, segundo o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte. "A família moderna tem a função de criar 'indivíduos' autônomos", diz. "Todos esses fenômenos atestam não a superação da família, mas a individualização. A família, no sentido amplo de rede de parentesco, está forte e ativa como sempre."
Segundo a psicóloga Belinda Mandelbaum, professora da USP, as novas famílias são pressionadas a reproduzir práticas individualistas e ainda sofrem por não se encaixarem no modelo tradicional.
"Há no imaginário social a ideia de que a família tradicional seria melhor. Não há melhor ou pior, o que importa é a qualidade dos laços."
Para ela, muitas das novas famílias não têm nada de novo. "Diferem na composição, mas repetem o funcionamento tradicional. Em casais homossexuais pode haver violência como nos héteros. Nas famílias sem pai, um avô ou tio assume a função paterna."
Não sem consequências, analisa Nilde Parada Franch, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise-SP. "O pai ausente pode deixar o registro de uma falta importante." Ela diz que o desafio, nesse quadro de diferentes agrupamentos, é tolerar as novidades, mas sem banalizá-las e sem ignorar traumas e perdas resultantes da revolução.

    FRASE
    "A paternidade está desaparecendo e as pessoas se identificam mais com a classe social a que pertencem do que com a família"

      ANÁLISE
      Da família do futuro ao futuro da família
      DARIO CALDASESPECIAL PARA A FOLHANovos estudos colocam uma interrogação sobre o futuro da família. As tendências demográficas são inegáveis. Não é a primeira vez que ocorre nem será a última.
      No cerne das mudanças está a mulher e a evolução de seus papeis. Ficou difícil equilibrar tantos pratos, ainda mais diante das dificuldades econômicas. Do lado masculino, o discurso nos últimos anos foi o de que ser homem não é mais prover e procriar. Ao homem moderno cabem os cuidados de si, as experiências na urbe sensorial etc. Some-se o individualismo galopante de vertente hedonista-narcisista e o juvenismo, que nos vendeu a ideia de que é possível e desejável viver em sempiterna adolescência.
      Embora o retrato atual seja esse, há um excesso de pessimismo nas previsões sobre o fim da família.
      Multiplicam-se sinais de sua renovação. Os jovens seguem expressando o desejo de união (não necessariamente de casamento, mas que importa?) e a maioria das mulheres, se a condição permite, quer filhos.
      O anseio por família e casamento dos casais homoafetivos é especialmente relevante, já que essa é uma fatia da população cujo comportamento é tido como precursor.
      E se a preservação da espécie continua sendo a pedra de toque do comportamento evolutivo, resta-nos perguntar: o futuro será pós-familiar, como pretendem alguns, ou moderno mesmo será conjugar a família em novos tempos e modos?

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