sábado, 5 de janeiro de 2013

Acadêmico e Coloquial - Leonardo Lichote.


O Globo:05/01/2013

Fundador do grupo Rumo e autor de livros de referência sobre a MPB, Luiz Tatit reafirma a força de sua obra em espetáculo de Zélia Duncan, parcerias com jovens artistas e discografia relançada

 Luiz Tatit acorda cedo. Às 7h começa a trabalhar — compor, ler,escrever — e segue assim até12h30m. É o período no qual produz mais. Depois do almoço, retoma a atividade com menos ímpeto (“Sem a mesma avidez”, explica). No fim da tarde,para. Calça o tênis e parte para a caminhada diária que, há 20 anos, faz na USP — ele mora ao lado da universidade,onde desde 2002 é professor titular do Departamento de Linguística.

Não corre, pois a coluna não permite. Todo dia, pelo mesmo caminho.O cotidiano metódico do compositor e teórico da música popular brasileira (“Uma vida supersistemática; nesse ponto sou mais acadêmico que músico”,brinca) revela um tanto da engenharia de sua obra — ao mesmo tempo cerebral e sensível, atenta à grandezados detalhes do cotidiano. Uma obra que, iniciada em 1974 com o grupo Rumo,parece estar num momento pleno de reconhecimento. Zélia Duncan montou o espetáculo “ToTatiando”, que apresenta desde o ano passado e que, neste ano, vira DVD; artistas jovens como Marcelo Jeneci, Emerson Leal, AnaCosta, Kristoff Silva e Camilo Frade têm gravado suas canções e mesmo escrito parcerias com ele; seus livros seguem como referência central no estudo da música popular brasileira; a discografia completa do Rumo acaba de ser lançada numa caixa (Dabliú Discos), assim como o DVD de um show do grupo gravado em 2004.

— Estou vivendo uma fase interessante,até não esperava que isso viesse tão logo — avalia Tatit. — Porque normalmente a gente não influencia a geração seguinte, geralmente é a terceira ou a quarta. Porque a seguinte tem uma relação de negação, de rivalidade com a sua. Mas lá pelo fim dos anos 1990,começaram a surgir sintomas de que estavam escutando a gente. Em 2003,2004, comecei a ouvir bandas seguindo as linhas que fazíamos no Rumo. Quando comecei a orientar teses na universidade,comecei a ver estudos sobre a Lira Paulistana, a minha geração. É como se dissessem que algumas coisas que a gente pensou estavam certas.As coisas certas que Tatit pensou — e desenvolveu em canções e livros — começaram a brotar bem antes dos anos1970. Adolescente, ele ficou intrigado ao se dar conta — pela geração dos festivais,pela Jovem Guarda — de que artistas que não eram músicos especialmente habilitados podiam compor. O nó só foi desatado por ele nas reflexões que levaram à criação do Rumo.— Em 1974, o que prevalecia eram os filhos do Tropicalismo — lembra ele, hoje com 61 anos. — Estávamos esperando uma mudança. Então, só valia fazer música se você tinha algo diferente a dizer. Nós estávamos na Escola de Comunicaçãoe Artes da USP, interessados em transferir elementos da vanguarda erudita para a música popular. Teve gente que queria transferir estruturas do erudito para o popular, como Arrigo(Barnabé) com o dodecafonismo. Mas no Rumo, nosso interesse era no segredo da música popular, o que tinha que ser mexido na letra e na melodia para soar diferente. E percebemos que a canção era feita a partir da entoação, da fala, mais do que das melodias. Isso para mim explicava os compositores não serem músicos, aquela questão que eu tinha da adolescência. A entoação está na base de qualquer canção.

O que nós fizemos foi explicitar isso.Seus primeiros diplomas da USP apontam o sentido de suas manhãs hoje,dedicadas ao estudo ou ao fazer das canções: formou-se em Letras (Linguística)em 1978 e em Música (Composição)em 1979. Letra e música. Canção— centro de seu trabalho musical e acadêmico.— Nossa preocupação no início do Rumo era mais melódica, a melodia feita a partir da entoação. Mas essa ideia interfere diretamente na letra, quase pede uma letra coloquial para ficar compatível com essa melodia.

Coisas de diálogo, quase falas puras.Colega de Rumo, Ná Ozzetti chama a atenção para a forma como ele desenvolve os temas e personagens em suas músicas:— Há sempre uma nova ótica sobre assuntos comuns.Passear pelas faixas da caixa do Rumo deixa claro do que Tatit e Ná estão falando.Canções como “Banzo” (“E aí,Matilde? Como está?”), “Aurora — O canto novela” (“Oi, estou aqui outravez/ Esperando por ela, esperando”),“Carnaval do Geraldo” (“Olha o Geraldo,pessoal!/ .../ Ói ele sambando lá naporta”), “Revelações” (“Faz tempo,né?/ Pois é”), “Encontro” (“Oi!/ Faztempo que a gente/ não bate de caraum no outro”), “Aceita a serenata”(“Ivone vai/ Você não se importa?/Não, né?”). Resultado lúdico, mesmo feito sobre uma base de reflexão.— No Luiz não tem a cabecice de alguns compositores paulistanos. É tudo muito popular. E ele adora isso, vê novelas,é um grande noveleiro — define Marcelo Jeneci, parceiro de Tatit em“Por que nós?”, gravada nos CDs mais recentes de ambos.

— É um gênio, com uma obra muito original. E compor com ele é muito interessante, porque para ele não tem muito esse negócio de precisar de inspiração. É trabalho, ele faz. Você manda uma melodia, demora no máximo três dias. Ele é de uma prontidão absurda, tudo é desmistificado, mais direto. Ele diz que não liga muito para a paisagem, porque se for para qualquer lugar do mundo vai trabalhar do mesmo jeito, fazer as mesmas coisas.Zélia Duncan confirma, por outra via, a desmistificação que Tatit aplica sobre seu próprio trabalho:— Nas apresentações de “ToTatiando”em que ele esteve presente, e ondeTatit e sua obra são o motivo de todo nosso trabalho e dedicação, ele entra na fila pra cumprimentar, como se não tivesse nada a ver com aquilo — diz a cantora, citando versos da canção “Esboço”,do compositor. — “E não adianta perder tempo/ Desprezando sua imagem/Pois nunca ele ligou/ Pra essas bobagens”.

SÃO PAULO COMO HABITAT

A fala de Jeneci sobre a paisagem toca na relação de Tatit com São Paulo , onde sempre viveu. Não só porque a cidade aparece como cenário de suas canções,mas também porque define seu pensamento em alguma medida:— O caminho novo de fazer canções a partir da fala, a ideia inusitada de estudar a música popular pela semiótica,numa época em que o que estava em voga eram os estudos a partir da História,de elementos sociais... Tudo issopode ser relacionado com São Paulo ,que vive do movimento, da novidade.

São Paulo não se importa muito com o passado, só com o futuro.O desejo pelo futuro serve como guia em ambas as frentes, mas Tatit vê suas atividades como estudioso e como compositor como dotadas de naturezas completamente diferentes:— A criação é síntese, o estudo é análise— explica Tatit. — São maneiras diferentes de encarar o objeto.
A ponto de, no início, eu não conseguir compor quando estava fazendo tese e de não mexer com a parte acadêmica quando estava fazendo disco. Claro que vaza um pouco do procedimento de um na outra. Uma vez estava estudando o tempo no sentido musical e, logo em seguida, fiz uma parceria com a Ná quese chamava “Tempo escondido”. Mas é natural, não me programo para isso. 

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