Nahima Maciel
Estado de Minas: 05/01/2013
A especialidade do canadense Timothy Brook é a China, mas por um desvio de rota bastante improvável ele acabou na Holanda. Durante umas férias, num verão chuvoso, ele desembarcou em Amsterdã, comprou uma bicicleta e partiu solitário para realizar o sonho de muito ciclista universitário adepto do mochilão: rodar as planícies holandesas em busca de sossego e paisagens. Foi assim que esbarrou em Delft e sua luz amarelada. A terra de Johannes Vermeer levou o então estudante de volta a um passado de ouro de uma pintura atrelada à história. Brook pedalava embalado pelo encanto dos moinhos nos horizontes quando foi surpreendido por uma chuva intensa e acolhido por uma holandesa de meia-idade em uma casa à beira da estrada. Corriam os anos 1970 e um rapaz de bicicleta não representava muito perigo. Foi então que Delft ficou impressa na memória do canadense para, 38 anos mais tarde, ressurgir na forma de um livro. O chapéu de Vermeer começou naquela tempestade de verão e levou o autor a recuar 343 anos em busca do cotidiano da sociedade na qual o mestre de Delft pôde criar as mais belas luzes da pintura holandesa.
Desde aquele passeio como universitário descompromissado, Brook se tornou especialista na história da dinastia Ming e professor das universidades de Oxford e Columbia, o que não impediu que fosse fisgado pela magia de Vermeer. Os oito capítulos do livro são uma viagem histórica pelo século 17 a partir das poucas pinturas deixadas pelo mestre. Cada quadro denuncia um contexto e Brook disseca as telas em busca de referências capazes de revelar como era a vida das pessoas na época.
Os quadros não falam apenas de Delft. As grandes navegações já agitavam os mares do planeta quando o pintor registrou sua diáfana Moça com brinco de pérola e não se pode ignorar esse detalhe quando se observa com cuidado telas como Oficial e moça sorridente e O geógrafo. Um mapa-múndi pendurado ao fundo da sala na qual a moça conversa com o oficial de chapéu imenso, um globo no alto de um armário da casa do geógrafo devidamente equipado com um compasso, os objetos pintados por Vermeer anunciam uma época e um modo de vida.
A primeira parada de Brook é uma análise do uso do chapéu a partir de Oficial e moça sorridente e Vista de Delft, uma das raras paisagens pintadas pelo holandês. Um detalhe do quadro guia o historiador pelos costumes e pelos vestuários da época, pela maneira como homens e mulheres se relacionavam e pelas rotas das navegações que levaram os europeus a desembarcar no continente norte-americano, onde encontraram uma população nativa disposta a trocar conhecimento por pólvora e metal.
Leitora à janela é uma viagem ao Oriente. Provavelmente, a modelo de Vermeer nunca tenha saído de Delft, mas há uma razão para estar acompanhada da fruteira de porcelana com desenhos azuis que repousa em cima da mesa. “A década de 1650 foi exatamente o momento em que a porcelana chinesa ocupou seu lugar na arte holandesa, assim como na vida holandesa”, escreve Brook. Assim como as especiarias e o chá, a porcelana era um dos produtos que alimentavam (e bem) o comércio entre o Oriente e o Ocidente. Acabou copiada com maestria pelos artesãos de Delft e a cidade ficou famosa por produzir a melhor faiança da Europa. Para chegar a essa conclusão, Brook despenca para terras distantes como Pérsia, China, Índia, México e até América Latina, já que o consumo da cerâmica se espalhou por todos os continentes graças às navegações que comercializavam a porcelana chinesa.
Fumantes
O geógrafo é o mote para o mergulho em um episódio curioso da conquista da China pelos jesuítas, mas é com um tema que nunca apareceu em um quadro de Vermeer que Brook constrói o capítulo mais interessante do livro. Fumantes eram figuras comuns nos azulejos produzidos pelos artesãos de Delft e em telas de nomes como Hendrik van der Burch e Peter de Hooch — esse último um segredo muito bem guardado da era de ouro da pintura holandesa. Os pintores gostavam de colocar cachimbos nas mãos de seus retratados para dar alguma função aos membros superiores. Questão de pose que diz muito sobre os hábitos da época.
O fumo chegou à China no século 16 e atravessou os mares orientais para se instalar na Europa como prática social (e ainda bem distante da ideia de vício) no século 17. Uma vez instituído, o hábito alimentou a pena de muitos autores. Um século antes, os descobridores se depararam com os indígenas das Américas e seus cachimbos repletos de uma mistura de plantas locais. Manuais e vasta literatura sobre a prática de fumar foram produzidos naquele período. Era possível até mesmo identificar classes sociais a partir da maneira como se consumia o tabaco. O fumo foi usado, inclusive, para o tratamento de doenças pulmonares.
Por fim, Brook pincela vários quadros para falar das viagens. As aventuras marítimas, lembra o autor, alimentavam cofres e sonhos. Histórias de viajantes perdidos, exilados voluntários em culturas distantes, servidões autoimpostas em troca de um lugar em um navio permeiam os últimos capítulos de O chapéu de Vermeer. O pintor morreu aos 43 anos, em dezembro de 1675, empobrecido, cheio de dívidas e obras encalhadas, um sinal da decadência de Delft. Enquanto a cidade prosperou, Vermeer vendeu. E vendeu muito bem. Mas as redes econômicas mudaram e a pequena cidade portuária, berço da fase mais luminosa da pintura holandesa, se apagou.
O chapéu de Vermeer
. De Timothy Brook, tradução de Maria Beatriz de Medina
. Editora Record, 278 páginas, R$ 47,90
Desde aquele passeio como universitário descompromissado, Brook se tornou especialista na história da dinastia Ming e professor das universidades de Oxford e Columbia, o que não impediu que fosse fisgado pela magia de Vermeer. Os oito capítulos do livro são uma viagem histórica pelo século 17 a partir das poucas pinturas deixadas pelo mestre. Cada quadro denuncia um contexto e Brook disseca as telas em busca de referências capazes de revelar como era a vida das pessoas na época.
Os quadros não falam apenas de Delft. As grandes navegações já agitavam os mares do planeta quando o pintor registrou sua diáfana Moça com brinco de pérola e não se pode ignorar esse detalhe quando se observa com cuidado telas como Oficial e moça sorridente e O geógrafo. Um mapa-múndi pendurado ao fundo da sala na qual a moça conversa com o oficial de chapéu imenso, um globo no alto de um armário da casa do geógrafo devidamente equipado com um compasso, os objetos pintados por Vermeer anunciam uma época e um modo de vida.
A primeira parada de Brook é uma análise do uso do chapéu a partir de Oficial e moça sorridente e Vista de Delft, uma das raras paisagens pintadas pelo holandês. Um detalhe do quadro guia o historiador pelos costumes e pelos vestuários da época, pela maneira como homens e mulheres se relacionavam e pelas rotas das navegações que levaram os europeus a desembarcar no continente norte-americano, onde encontraram uma população nativa disposta a trocar conhecimento por pólvora e metal.
Leitora à janela é uma viagem ao Oriente. Provavelmente, a modelo de Vermeer nunca tenha saído de Delft, mas há uma razão para estar acompanhada da fruteira de porcelana com desenhos azuis que repousa em cima da mesa. “A década de 1650 foi exatamente o momento em que a porcelana chinesa ocupou seu lugar na arte holandesa, assim como na vida holandesa”, escreve Brook. Assim como as especiarias e o chá, a porcelana era um dos produtos que alimentavam (e bem) o comércio entre o Oriente e o Ocidente. Acabou copiada com maestria pelos artesãos de Delft e a cidade ficou famosa por produzir a melhor faiança da Europa. Para chegar a essa conclusão, Brook despenca para terras distantes como Pérsia, China, Índia, México e até América Latina, já que o consumo da cerâmica se espalhou por todos os continentes graças às navegações que comercializavam a porcelana chinesa.
Fumantes
O geógrafo é o mote para o mergulho em um episódio curioso da conquista da China pelos jesuítas, mas é com um tema que nunca apareceu em um quadro de Vermeer que Brook constrói o capítulo mais interessante do livro. Fumantes eram figuras comuns nos azulejos produzidos pelos artesãos de Delft e em telas de nomes como Hendrik van der Burch e Peter de Hooch — esse último um segredo muito bem guardado da era de ouro da pintura holandesa. Os pintores gostavam de colocar cachimbos nas mãos de seus retratados para dar alguma função aos membros superiores. Questão de pose que diz muito sobre os hábitos da época.
O fumo chegou à China no século 16 e atravessou os mares orientais para se instalar na Europa como prática social (e ainda bem distante da ideia de vício) no século 17. Uma vez instituído, o hábito alimentou a pena de muitos autores. Um século antes, os descobridores se depararam com os indígenas das Américas e seus cachimbos repletos de uma mistura de plantas locais. Manuais e vasta literatura sobre a prática de fumar foram produzidos naquele período. Era possível até mesmo identificar classes sociais a partir da maneira como se consumia o tabaco. O fumo foi usado, inclusive, para o tratamento de doenças pulmonares.
Por fim, Brook pincela vários quadros para falar das viagens. As aventuras marítimas, lembra o autor, alimentavam cofres e sonhos. Histórias de viajantes perdidos, exilados voluntários em culturas distantes, servidões autoimpostas em troca de um lugar em um navio permeiam os últimos capítulos de O chapéu de Vermeer. O pintor morreu aos 43 anos, em dezembro de 1675, empobrecido, cheio de dívidas e obras encalhadas, um sinal da decadência de Delft. Enquanto a cidade prosperou, Vermeer vendeu. E vendeu muito bem. Mas as redes econômicas mudaram e a pequena cidade portuária, berço da fase mais luminosa da pintura holandesa, se apagou.
O chapéu de Vermeer
. De Timothy Brook, tradução de Maria Beatriz de Medina
. Editora Record, 278 páginas, R$ 47,90
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