E se vivêssemos tudos juntos?: a amizade como realização política
João Paulo
Estado de Minas: 05/01/2013
O filme E se vivêssemos todos juntos?, do diretor Stéphane Robelin, tem levado muita gente ao cinema e resiste depois de 10 semanas em cartaz na cidade. O fato chama a atenção, por não ser filme que se enquadre na lógica do mercado: não tem heróis de fantasia, violência explícita ou trama adolescente. É fita para adultos. A história, aparentemente banal, tem como protagonistas cinco idosos, dois casais e um solteirão don-juanesco, amigos de longa data, que percebendo que não têm mais lugar no mundo e nas respectivas famílias, resolvem se juntar para ajudar uns aos outros. Assim como jovens que vivem em repúblicas para dividir os custos e partilhar experiências, nossos velhos têm a percepção de uma terceira via: nem o asilo, nem a solidão (a ideia de morar com os filhos nem é cogitada na civilizada França contemporânea).
O filme começa com uma cena que mostra que os velhos não oferecem mais riscos, logo deixaram de ser um problema público para se tornar uma questão privada. Em meio a uma manifestação política, um dos personagens protesta e chega apedrejar um policial, que, como se nada tivesse acontecido, segue adiante e só prende os jovens. Para o velho comunista, não pode haver nada pior que ser relegado ao passado, sobretudo numa sociedade cada vez mais reacionária. Os comunistas não trazem nos ombros alternativas vencidas, mas propostas que nem chegaram a ser testadas de verdade, por isso ser desprezado por um guardinha e ser considerado menos ameaçador que estudantes imberbes é a suprema humilhação.
No entanto, o que parece ser reação a tempos sombrios, com a vindicação de uma forma singular de vida coletiva, vai aos poucos se desenhando como uma narrativa melancólica, um filme sobre perdas, ainda que temperado pelo humor que afasta a morbidez. Os cinco personagens apresentam, todos eles, achaques do presente – a fraqueza do corpo – e do passado – as intermitências culposas da memória. E é entre as duas formas de temporalidade, o presente que precisa ser vivido e o passado que cobra sua verdade, que a narrativa se desenrola. Em meio a clichês, E se vivêssemos todos juntos zomba dos clichês para afirmar um olhar ainda cheio de frescor e energia. A morte ronda, mas o território é da vida, ainda que a única vida possível seja marcada por dores, esvaziamento do sentido e urgência.
O fato de o filme ter como estrelas as atrizes Jane Fonda e Géraldine Chaplin é um elemento a mais de sabedoria narrativa , ainda que simbólica. Jane Fonda, por muito tempo, representou o ideal da negação do envelhecimento cosmético da sociedade americana, com seus programas de exercícios e exposição de uma beleza que parecia infensa ao tempo. Géraldine Chaplin, com suas rugas explícitas, surge como mãe ou avó de Carlitos, personagem de seu pai, que se perde num passado eternizado pela figura do jovem vagabundo e pária sensível de uma sociedade em crise. Chega um momento em que nos tornamos pais dos nossos pais, no ciclo sem fim da existência.
O filme francês é, ao mesmo tempo, a afirmação de uma verdade existencial, de cinco homens e mulheres que envelhecem e precisam dar conta das demandas da vida, e de uma situação social, que aponta um mundo que não tem lugar para os velhos e os acha ridículos. A inversão operada pelo longa, localizando a vida na mão dos velhos que podem mudar seu destino para pôr os jovens no lugar de escravos das exigências exteriores às quais não conseguem romper, é uma crítica ácida aos nossos tempos. A perspectiva de uma vida comunal, hoje, só é concebível como revolta. No cenário do individualismo pós-moderno, a amizade de torna uma ação revolucionária. Regredidos ao tempo de Étienne de la Boétie, no século 16, vivemos hoje a orgulhosa era da servidão voluntária.
Modo de usar
O tema do envelhecimento e da morte também aparece no livro A arte de envelhecer (Editora Martins Fontes) do filósofo Arthur Schopenhauer (1788–1860), cuja tradução foi lançada recentemente no Brasil. O pensador é sempre ligado ao pessimismo, e por isso era de se esperar que sua obra sobre a velhice trouxesse o gosto amargo da derrota, como um adiado “eu não disse?”, que comprovasse suas previsões mais derrotistas. Em outras palavras, algo como “faça o que fizer, o fim será amargo e a existência resultará sem sentido”. Não é o que se encontra em A arte de envelhecer.
Antes de chegar ao livro, talvez fosse bom entender um pouco do pessimismo schopenhauriano, que inspirou pensadores como Nietzsche e Freud. A primeira intuição do filósofo, ainda na adolescência, foi sobre o que chamou de “as dores do mundo”. Como o príncipe Sidarta (Schopenhauer se alimentou de fontes orientais como o budismo, o taoísmo e a sabedoria dos Upanishads), o jovem pensador tomou conhecimento íntimo da realidade da doença, do envelhecimento e da morte.
Em vez de se afundar no pessimismo que não admite saída, passou a criar uma filosofia da consolação. Sem abrir mão da consciência das perdas inevitáveis, decidiu afirmar a realidade da única vida possível. Se a raiz de tudo é sofrimento, nem por isso o homem pode deixar de intentar realizações no polo oposto da dor, por meio da beleza, do amor compassivo e mesmo da liberdade do conhecimento. O resultado, em vez da falência das filosofias da consciência, seria algo próximo de uma união mística com o todo. Ou seja, o pessimismo é o ponto de partida teórico (mesmo que real) que permite ao homem avançar até a construção de um modo de vida ligado às forças da vida e da vontade. A filosofia de Schopenhauer, em sua finalidade, é uma ética de vida. Ainda que ele tenha certeza de que a vida não é bela.
Com isso, em suas obras, além de atacar os grandes nomes da filosofia acadêmica de seu tempo, sobretudo Fichte e Hegel, Schopenhauer incorporou ao seu projeto o papel de desvendar as ilusões do mundo e abrir portas para a vida real, que supõe a existência das dores do mundo, mas nem por isso sucumbe a elas. O pensador tinha consciência da vitória da morte como desaparecimento do fenômeno corporal, mas lidava com a concepção cósmica de vida, a vontade de viver, que é impercível. É nesse aspecto que se inserem as reflexões reunidas em A arte de envelhecer. O livro é um conjunto de 319 aforismos e pode ser considerado uma espécie de testamento do filósofo.
O livro, como título anuncia, trata da arte de viver. Para o pensador, o envelhecimento, como etapa inescapável da existência, tem também sua arte peculiar. Para enfrentá-la, Schopenhauer contrapõe juventude e velhice neste vale de lágrimas que nos foi dado viver. Na primeira metade da vida, o homem é atravessado pelo anseio de uma felicidade sempre frustrada. O homem habita um universo de ilusões. Na segunda metade, essas ilusões se esfumam e, sem maiores expectativas, o homem se permite viver a experiência da sociabilidade e da alegria desinteressada no amor e na arte. O envelhecimento nos aproxima da morte, mas nos dá em troca a serenidade de uma representação mais adequada dos nossos limites.
Sobre a velhice e a morte, talvez a maior lição venha do estoico Epicteto (55–135), que lembrava que a morte surpreende o sapateiro costurando o couro e o marinheiro durante a viagem. Como você gostaria de ser surpreendido? As escolhas da vida são a antevisão da forma como morreremos. Sucumbir em paz ao lado dos amigos, como em E se vivêssemos todos juntos?, nos obriga, hoje, a cultivá-los com amor.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
O filme começa com uma cena que mostra que os velhos não oferecem mais riscos, logo deixaram de ser um problema público para se tornar uma questão privada. Em meio a uma manifestação política, um dos personagens protesta e chega apedrejar um policial, que, como se nada tivesse acontecido, segue adiante e só prende os jovens. Para o velho comunista, não pode haver nada pior que ser relegado ao passado, sobretudo numa sociedade cada vez mais reacionária. Os comunistas não trazem nos ombros alternativas vencidas, mas propostas que nem chegaram a ser testadas de verdade, por isso ser desprezado por um guardinha e ser considerado menos ameaçador que estudantes imberbes é a suprema humilhação.
No entanto, o que parece ser reação a tempos sombrios, com a vindicação de uma forma singular de vida coletiva, vai aos poucos se desenhando como uma narrativa melancólica, um filme sobre perdas, ainda que temperado pelo humor que afasta a morbidez. Os cinco personagens apresentam, todos eles, achaques do presente – a fraqueza do corpo – e do passado – as intermitências culposas da memória. E é entre as duas formas de temporalidade, o presente que precisa ser vivido e o passado que cobra sua verdade, que a narrativa se desenrola. Em meio a clichês, E se vivêssemos todos juntos zomba dos clichês para afirmar um olhar ainda cheio de frescor e energia. A morte ronda, mas o território é da vida, ainda que a única vida possível seja marcada por dores, esvaziamento do sentido e urgência.
O fato de o filme ter como estrelas as atrizes Jane Fonda e Géraldine Chaplin é um elemento a mais de sabedoria narrativa , ainda que simbólica. Jane Fonda, por muito tempo, representou o ideal da negação do envelhecimento cosmético da sociedade americana, com seus programas de exercícios e exposição de uma beleza que parecia infensa ao tempo. Géraldine Chaplin, com suas rugas explícitas, surge como mãe ou avó de Carlitos, personagem de seu pai, que se perde num passado eternizado pela figura do jovem vagabundo e pária sensível de uma sociedade em crise. Chega um momento em que nos tornamos pais dos nossos pais, no ciclo sem fim da existência.
O filme francês é, ao mesmo tempo, a afirmação de uma verdade existencial, de cinco homens e mulheres que envelhecem e precisam dar conta das demandas da vida, e de uma situação social, que aponta um mundo que não tem lugar para os velhos e os acha ridículos. A inversão operada pelo longa, localizando a vida na mão dos velhos que podem mudar seu destino para pôr os jovens no lugar de escravos das exigências exteriores às quais não conseguem romper, é uma crítica ácida aos nossos tempos. A perspectiva de uma vida comunal, hoje, só é concebível como revolta. No cenário do individualismo pós-moderno, a amizade de torna uma ação revolucionária. Regredidos ao tempo de Étienne de la Boétie, no século 16, vivemos hoje a orgulhosa era da servidão voluntária.
Modo de usar
O tema do envelhecimento e da morte também aparece no livro A arte de envelhecer (Editora Martins Fontes) do filósofo Arthur Schopenhauer (1788–1860), cuja tradução foi lançada recentemente no Brasil. O pensador é sempre ligado ao pessimismo, e por isso era de se esperar que sua obra sobre a velhice trouxesse o gosto amargo da derrota, como um adiado “eu não disse?”, que comprovasse suas previsões mais derrotistas. Em outras palavras, algo como “faça o que fizer, o fim será amargo e a existência resultará sem sentido”. Não é o que se encontra em A arte de envelhecer.
Antes de chegar ao livro, talvez fosse bom entender um pouco do pessimismo schopenhauriano, que inspirou pensadores como Nietzsche e Freud. A primeira intuição do filósofo, ainda na adolescência, foi sobre o que chamou de “as dores do mundo”. Como o príncipe Sidarta (Schopenhauer se alimentou de fontes orientais como o budismo, o taoísmo e a sabedoria dos Upanishads), o jovem pensador tomou conhecimento íntimo da realidade da doença, do envelhecimento e da morte.
Em vez de se afundar no pessimismo que não admite saída, passou a criar uma filosofia da consolação. Sem abrir mão da consciência das perdas inevitáveis, decidiu afirmar a realidade da única vida possível. Se a raiz de tudo é sofrimento, nem por isso o homem pode deixar de intentar realizações no polo oposto da dor, por meio da beleza, do amor compassivo e mesmo da liberdade do conhecimento. O resultado, em vez da falência das filosofias da consciência, seria algo próximo de uma união mística com o todo. Ou seja, o pessimismo é o ponto de partida teórico (mesmo que real) que permite ao homem avançar até a construção de um modo de vida ligado às forças da vida e da vontade. A filosofia de Schopenhauer, em sua finalidade, é uma ética de vida. Ainda que ele tenha certeza de que a vida não é bela.
Com isso, em suas obras, além de atacar os grandes nomes da filosofia acadêmica de seu tempo, sobretudo Fichte e Hegel, Schopenhauer incorporou ao seu projeto o papel de desvendar as ilusões do mundo e abrir portas para a vida real, que supõe a existência das dores do mundo, mas nem por isso sucumbe a elas. O pensador tinha consciência da vitória da morte como desaparecimento do fenômeno corporal, mas lidava com a concepção cósmica de vida, a vontade de viver, que é impercível. É nesse aspecto que se inserem as reflexões reunidas em A arte de envelhecer. O livro é um conjunto de 319 aforismos e pode ser considerado uma espécie de testamento do filósofo.
O livro, como título anuncia, trata da arte de viver. Para o pensador, o envelhecimento, como etapa inescapável da existência, tem também sua arte peculiar. Para enfrentá-la, Schopenhauer contrapõe juventude e velhice neste vale de lágrimas que nos foi dado viver. Na primeira metade da vida, o homem é atravessado pelo anseio de uma felicidade sempre frustrada. O homem habita um universo de ilusões. Na segunda metade, essas ilusões se esfumam e, sem maiores expectativas, o homem se permite viver a experiência da sociabilidade e da alegria desinteressada no amor e na arte. O envelhecimento nos aproxima da morte, mas nos dá em troca a serenidade de uma representação mais adequada dos nossos limites.
Sobre a velhice e a morte, talvez a maior lição venha do estoico Epicteto (55–135), que lembrava que a morte surpreende o sapateiro costurando o couro e o marinheiro durante a viagem. Como você gostaria de ser surpreendido? As escolhas da vida são a antevisão da forma como morreremos. Sucumbir em paz ao lado dos amigos, como em E se vivêssemos todos juntos?, nos obriga, hoje, a cultivá-los com amor.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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