Bernardo Scartezini
Estado de Minas: 05/01/2013
Sempre teremos Paris. E sempre teremos 1968. Estamos de volta àquele tempo e àquele lugar – agora na companhia de Lawrence Ferlinghetti. O baita poeta beat revisita um dos momentos mais emblemáticos da contracultura do século 20 com este seu livro Amor nos tempos de fúria.
A mitologia de 1968 é vasta e já bastante palmilhada pela arte nas últimas décadas. Mas estaremos na companhia, desta vez, de um casal nem tão jovenzinho assim. Um casal que passa à larga de Sorbonne e do câmpus de Nanterre, embora não deixe de respirar um certo ar de revolução – com o perdão pela expressão.
A norte-americana Annie tem 40 e poucos anos. Trabalha como professora de artes plásticas em Paris. Nas passeatas, consegue distinguir as feições de alguns de seus alunos, distinguir alguns de seus traços nos cartazes e nos muros da grande cidade. Ela se afeiçoa por um sujeito oblíquo. Um sujeito que parece ofender o espírito daquele tempo. O português Juan tem 50 e poucos anos. Ele é banqueiro. É aquele tipo de burguês que frequenta bons restaurantes e elegantes hotéis. É bem o tipo de “inimigo” que os alunos de Annie adorariam apedrejar em praça pública.
Mas Juan é um cara legal, ele jura ser um cara legal. Ele é um camarada de esquerda que apenas estava no lugar certo na hora certa: conseguiu um emprego bacana num banco lisboeta e, quando seu chefe morreu sem deixar herdeiros, acabou por lhe cair no colo uma oportunidade única na vida de um bom revolucionário.
Juan agora está dentro do sistema para fazê-lo ruir a partir do lado de dentro. Juan é o grande sabotador. Juan é um anarquista. Ele não tem simpatia alguma por partidos e líderes da esquerda tradicional, pois acredita que, uma vez alçados ao poder, esses caras se comportariam tão sordidamente quanto seus antecessores. Para evitar que o poder corrompa quem dele se acerque, entende Juan, seria mais seguro arrasar todo o sistema financeiro-capitalista-industrial que nutre esse poder.
Annie está por demais apaixonada para duvidar de Juan a sangue-frio. Embora seus instintos revolucionários e o que lhe resta de espírito juvenil teimem em lhe dizer o oposto, ela parece estar disposta a bancar as palavras incendiárias de Juan. É aqui que Fernando Pessoa manda um abraço. A personagem de Juan foi inspirada em Lawrence Ferlinghetti por um “conto filosófico” do poeta português. O banqueiro anarquista, publicado por Pessoa no ano de 1922, apresentava uma grande ironia de seu autor em cima tanto dos discursos iluministas quanto das cartilhas marxistas.
Ferlinghetti, nesse aceno para Pessoa, coloca toda a revolução de 1968 sob uma lente bastante fria. Um tanto cínica até. Os seus protagonistas parecem ser que nem aqueles personagens de Jean-Luc Godard em A chinesa (1967), que interrompem as atividades de sua célula maoísta porque o verão já está acabando e – afinal – eles todos têm que voltar aos seus afazeres.
Guerra e poesia
Lawrence Ferlinghetti lutou na Segunda Guerra Mundial. Era capitão de fragata da Marinha norte-americana quando os aliados invadiram a Normandia, em 6 de junho de 1944. Ferlinghetti já era beat antes mesmo de o termo “beat” ser usado pela imprensa. Ele fundou a editora e livraria City Lights e com ela deu aos poetas de São Francisco um centro gravitacional e emocional a partir de meados dos anos 1950.
Quando a censura dos Estados Unidos quis barrar o Uivo (1956), de Allen Ginsberg, por conta de sua “linguagem obscena”, foi o editor Lawrence Ferlinghetti quem peitou as acusações e, virando o jogo, abriu um precedente que fez ser possível tudo o que se seguiria a partir dali...
A literatura beat, o rock californiano, os testes com ácido lisérgico, a cena hippie de Haight-Ashbury e – por que não? – maio de 1968 em Paris, Praga, Londres...
Por isso, não podemos nos espantar com a ideia de que Lawrence Ferlinghetti estava em Paris em maio de 1968. Onde mais ele poderia estar, não é mesmo? Na condição de professor visitante em Sorbonne, o poeta pôde se sentir tanto parte ativa quanto observador distante dos agitos estudantis daquele momento.
E quando resolveu escrever explicitamente sobre aquele tempo, aquele lugar, saiu-se com este Amor nos tempos de fúria. Eis um raro romance dentro da notável obra poética de seu autor. O texto saiu em 1988 pela City Lights, 20 anos depois do vendaval, e agora recebe sua primeira edição brasileira pela L&PM.
A mesma L&PM que já publicara há quatro anos Um parque de diversões na cabeça, a versão nacional para A Coney Island of the mind (1958), a obra maior de Ferlinghetti. Esse livro é tido nos EUA como o mais vendido título de um poeta americano vivo. Pois Lawrence Ferlinghetti, ainda a rebimbar hoje em inacreditáveis 93 anos, sobreviveu aos seus colegas de geração beat – Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs – todos eles, vítimas de seus apetites vorazes.
Ferlinghetti nunca foi um best-seller, nunca virou modinha entre os descolados. Ferlinghetti pegou a estrada mais comprida. Se essa pequena joia transgressora e libertária chamada A Coney Island of the mind for realmente o mais vendido livro de um poeta norte-americano vivo, pode-se dizer que isso se deve ao fato de Lawrence Ferlinghetti ter sempre estado aqui por perto.
Então, se Lawrence Ferlinghetti dá uma bela de uma empanada naquele romantismo saudosista de 1968 neste Amor nos tempos de fúria, por favor, isso não significa que ele não consiga se identificar com ideais libertários ou transformadores. Muito pelo contrário. As reservas de Ferlinghetti se devem ao fato de ele saber muito bem que a verdadeira revolução não nasce em canteiros políticos, em panfletos mimeografados ou em palavras de ordem de ocasião.
A revolução nasce – quietinha – cá dentro da cachola. Lawrence Ferlinghetti leva bem a sério aquele ensinamento que nosso saudoso poeta Roberto Piva tanto repetia aqui pelas ruas de São Paulo: um poeta experimental precisa levar uma vida experimental.
E, cá entre nós, mesmo o grande Roberto Piva não teria sido o grande Roberto Piva se antes dele já não houvesse um... Lawrence Ferlinghetti.
AMOR NOS TEMPOS DE FÚRIA
. De Lawrence Ferlinghetti, tradução de Rodrigo Breunig
. L&PM Editores, 144 páginas, R$ 16
A mitologia de 1968 é vasta e já bastante palmilhada pela arte nas últimas décadas. Mas estaremos na companhia, desta vez, de um casal nem tão jovenzinho assim. Um casal que passa à larga de Sorbonne e do câmpus de Nanterre, embora não deixe de respirar um certo ar de revolução – com o perdão pela expressão.
A norte-americana Annie tem 40 e poucos anos. Trabalha como professora de artes plásticas em Paris. Nas passeatas, consegue distinguir as feições de alguns de seus alunos, distinguir alguns de seus traços nos cartazes e nos muros da grande cidade. Ela se afeiçoa por um sujeito oblíquo. Um sujeito que parece ofender o espírito daquele tempo. O português Juan tem 50 e poucos anos. Ele é banqueiro. É aquele tipo de burguês que frequenta bons restaurantes e elegantes hotéis. É bem o tipo de “inimigo” que os alunos de Annie adorariam apedrejar em praça pública.
Mas Juan é um cara legal, ele jura ser um cara legal. Ele é um camarada de esquerda que apenas estava no lugar certo na hora certa: conseguiu um emprego bacana num banco lisboeta e, quando seu chefe morreu sem deixar herdeiros, acabou por lhe cair no colo uma oportunidade única na vida de um bom revolucionário.
Juan agora está dentro do sistema para fazê-lo ruir a partir do lado de dentro. Juan é o grande sabotador. Juan é um anarquista. Ele não tem simpatia alguma por partidos e líderes da esquerda tradicional, pois acredita que, uma vez alçados ao poder, esses caras se comportariam tão sordidamente quanto seus antecessores. Para evitar que o poder corrompa quem dele se acerque, entende Juan, seria mais seguro arrasar todo o sistema financeiro-capitalista-industrial que nutre esse poder.
Annie está por demais apaixonada para duvidar de Juan a sangue-frio. Embora seus instintos revolucionários e o que lhe resta de espírito juvenil teimem em lhe dizer o oposto, ela parece estar disposta a bancar as palavras incendiárias de Juan. É aqui que Fernando Pessoa manda um abraço. A personagem de Juan foi inspirada em Lawrence Ferlinghetti por um “conto filosófico” do poeta português. O banqueiro anarquista, publicado por Pessoa no ano de 1922, apresentava uma grande ironia de seu autor em cima tanto dos discursos iluministas quanto das cartilhas marxistas.
Ferlinghetti, nesse aceno para Pessoa, coloca toda a revolução de 1968 sob uma lente bastante fria. Um tanto cínica até. Os seus protagonistas parecem ser que nem aqueles personagens de Jean-Luc Godard em A chinesa (1967), que interrompem as atividades de sua célula maoísta porque o verão já está acabando e – afinal – eles todos têm que voltar aos seus afazeres.
Guerra e poesia
Lawrence Ferlinghetti lutou na Segunda Guerra Mundial. Era capitão de fragata da Marinha norte-americana quando os aliados invadiram a Normandia, em 6 de junho de 1944. Ferlinghetti já era beat antes mesmo de o termo “beat” ser usado pela imprensa. Ele fundou a editora e livraria City Lights e com ela deu aos poetas de São Francisco um centro gravitacional e emocional a partir de meados dos anos 1950.
Quando a censura dos Estados Unidos quis barrar o Uivo (1956), de Allen Ginsberg, por conta de sua “linguagem obscena”, foi o editor Lawrence Ferlinghetti quem peitou as acusações e, virando o jogo, abriu um precedente que fez ser possível tudo o que se seguiria a partir dali...
A literatura beat, o rock californiano, os testes com ácido lisérgico, a cena hippie de Haight-Ashbury e – por que não? – maio de 1968 em Paris, Praga, Londres...
Por isso, não podemos nos espantar com a ideia de que Lawrence Ferlinghetti estava em Paris em maio de 1968. Onde mais ele poderia estar, não é mesmo? Na condição de professor visitante em Sorbonne, o poeta pôde se sentir tanto parte ativa quanto observador distante dos agitos estudantis daquele momento.
E quando resolveu escrever explicitamente sobre aquele tempo, aquele lugar, saiu-se com este Amor nos tempos de fúria. Eis um raro romance dentro da notável obra poética de seu autor. O texto saiu em 1988 pela City Lights, 20 anos depois do vendaval, e agora recebe sua primeira edição brasileira pela L&PM.
A mesma L&PM que já publicara há quatro anos Um parque de diversões na cabeça, a versão nacional para A Coney Island of the mind (1958), a obra maior de Ferlinghetti. Esse livro é tido nos EUA como o mais vendido título de um poeta americano vivo. Pois Lawrence Ferlinghetti, ainda a rebimbar hoje em inacreditáveis 93 anos, sobreviveu aos seus colegas de geração beat – Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs – todos eles, vítimas de seus apetites vorazes.
Ferlinghetti nunca foi um best-seller, nunca virou modinha entre os descolados. Ferlinghetti pegou a estrada mais comprida. Se essa pequena joia transgressora e libertária chamada A Coney Island of the mind for realmente o mais vendido livro de um poeta norte-americano vivo, pode-se dizer que isso se deve ao fato de Lawrence Ferlinghetti ter sempre estado aqui por perto.
Então, se Lawrence Ferlinghetti dá uma bela de uma empanada naquele romantismo saudosista de 1968 neste Amor nos tempos de fúria, por favor, isso não significa que ele não consiga se identificar com ideais libertários ou transformadores. Muito pelo contrário. As reservas de Ferlinghetti se devem ao fato de ele saber muito bem que a verdadeira revolução não nasce em canteiros políticos, em panfletos mimeografados ou em palavras de ordem de ocasião.
A revolução nasce – quietinha – cá dentro da cachola. Lawrence Ferlinghetti leva bem a sério aquele ensinamento que nosso saudoso poeta Roberto Piva tanto repetia aqui pelas ruas de São Paulo: um poeta experimental precisa levar uma vida experimental.
E, cá entre nós, mesmo o grande Roberto Piva não teria sido o grande Roberto Piva se antes dele já não houvesse um... Lawrence Ferlinghetti.
AMOR NOS TEMPOS DE FÚRIA
. De Lawrence Ferlinghetti, tradução de Rodrigo Breunig
. L&PM Editores, 144 páginas, R$ 16
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