sábado, 12 de janeiro de 2013

Cronicamente inviável (Centenário de Rubem Braga) - João Paulo‏

Obra de Rubem Braga conseguiu o raro feito de agradar os leitores comuns e os escritores mais sofisticados. A crítica, no entanto, demorou a entender o tesouro que tinha nas mãos 

João Paulo
Estado de Minas: 12/01/2013 
Rubem Braga e a crônica parecem fazer parte da mesma realidade. Os dois, o homem e o gênero, integram uma equação quase inexplicável em sua simplicidade: como é possível ser profundo usando palavras singelas? Qual o segredo de penetrar no coração prosaico da vida com o uso de um lirismo próximo ao sublime? De que forma é possível fazer alta literatura escolhendo como instrumento de realização um modo menor de expressão? Por que, ao falar de si ou para um único interlocutor (um amigo ou um amor que se vai), o cronista nos inclui em sua família humana e nos faz sentir que escreve para nós, ou melhor, que começa uma conversa íntima?

São perguntas sem resposta. Aliás, é interessante como a crônica e Rubem Braga, que sempre fizeram grande sucesso no Brasil, nunca receberam dos estudiosos da literatura uma atenção à altura de sua importância na vida das letras no país. Afinal, a crônica, se não é invenção brasileira, ganhou por aqui um jeito próprio que deu a ela sua segunda cidadania (assim como o futebol), e, entre os cronistas, Braga certamente merece ser destacado como o maior de todos, mesmo porque, além de um pequeno livro de poemas e um volume de artigos sobre pintores, passou a vida dedicado exclusivamente ao gênero.

A exceção, entre as poucas manifestações de interesse em estudar a obra do cronista na academia, talvez seja o ensaio “Onde andará o velho Braga”, de Davi Arrigucci Jr., publicado originalmente em 1979 no livro Achados de perdidos (Editora Polis). No livro, Braga está em boa companhia, ao lado de trabalhos sobre Borges, Quevedo, Cortázar e Murilo Mendes. Arrigucci, especialista em literatura latino-americana e na poesia de Manuel Bandeira, inova ao trazer para o primeiro plano um autor que, embora reconhecido pelos leitores e pares, não havia sido até então objeto de atenção, como se sua literatura se esgotasse nos jornais e se perdesse em sua ambição humilde para o tom menor.

O ensaio destaca com finura e acuidade as principais características da prosa e do projeto literário do cronista. Em primeiro lugar, o resgate da figura do narrador, em baixa numa época que despreza a experiência humana: para Braga, há histórias se perdendo que carecem de recuperação, o que explica um certo tom melancólico em suas crônicas. Em seguida, Arrigucci destaca o saudável materialismo do escritor, a busca pela perpetuação do instante, fugindo da sanha destruidora do tempo.

“Onde andará o velho Braga?” busca ainda parentescos do trabalho de Rubem Braga com o de outros escritores. Intui, por exemplo, a semelhança com a poesia de Manuel Bandeira, que se dizia um poeta menor, capaz de tratar com sabedoria e simplicidade “da carne concreta e dos estados fugidios do espírito”. E vai até o irlandês James Joyce, para comparar a capacidade de iluminar o instante que existe entre os dois escritores, esses coletores de epifanias e sensualidade. Humilde, dado a iluminações profanas, lírico e atento à memória das coisas, o velho Braga seria ainda portador de uma ética que se realiza na sensibilidade para as contradições da sociedade em que vivia.

Quando foi publicado o ensaio de Arrigucci, Braga estava na muda. Escrevia pouco, praticamente havia desistido de publicar livros em favor de coletâneas que passaram a ser a expressão do que ele entendia como sua obra mais durável, que ficou registrada na antologia 200 crônicas escolhidas. Para o ensaísta, o silêncio de Braga, ou pelo menos sua palavra mais rara, além de privar o leitor de uma solidariedade à qual se acostumara por muitas décadas, permitia enxergar com mais clareza o fulgor de sua criação. “Como se a beleza de sua prosa necessitasse de um progressivo silêncio para se mostrar na completa e radiosa presença”, sintetizou Arrigucci.

Rés do chão É fácil perceber que a crônica não tem espaço na academia. Na edição dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles dedicada a Rubem Braga, a seção destinada à bibliografia sobre o cronista ocupa menos de duas páginas. A mesma publicação, sempre rigorosa, no volume dedicado a Carlos Drummond de Andrade, preenche nada menos de 50 páginas com referências de estudos sobre a obra drummondiana. O que pode parecer sinal de descompromisso com a criação do cronista talvez seja na verdade uma resposta característica ao gênero. A crônica, em sua essência, não nasce para virar livro nem carrega a pretensão de perenidade.

Antonio Candido, em ensaio dedicado à crônica (“A vida ao rés do chão”, em Recortes), é certeiro ao descrever o gênero em sua evolução, que aos poucos vai perdendo a intenção de informar para ficar sobretudo com a de divertir. Com isso, a crônica vai contribuir para a quebra do artifício, tão forte em nosso beletrismo esnobe, trazendo a oralidade para a escrita. O resultado, além de estilístico, é político, na medida em que as letras deixam de carregar o peso de classe para se validar pelo prazer e democratização da leitura. 

Há alguns anos, uma coleção de sucesso dedicada aos jovens, Para gostar de ler, tinha como principais autores os cronistas, invertendo o sentido aristocrático, pernóstico e cacete das antigas antologias escolares. “É que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua-geral lírica, irônica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por um diálogo certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo”, conclui Candido.

Não é por acaso que Rubem Braga se aferrou ao ofício de cronista. Para ele, de certa forma, era como ocupar um não lugar, um território sem normas e, consequentemente, sem maior importância. Há uma tendência dupla nos cultores da crônica que escapa ao projeto de Rubem Braga. Os cronistas gostam de se dizer jornalistas, porque publicam em jornais; e têm a ambição de se tornarem escritores, por recolher seus textos em livro. Braga nunca quis ser nem uma coisa nem outra. 
Negava do jornalismo o apego ao fato e mesmo ao comentário sobre temas do momento; zombava dos literatos pela afirmação de sua individualidade sem compromisso a não ser com a própria vocação para a solidão e o desajuste social. “A crônica é subliteratura que o cronista usa para desabafar perante os leitores. O cronista é um desajustado emocional que desabafa com os leitores.” Um marginal duplo e assumido: está fora da imprensa e da literatura.

Papel-jornal
 A relação da crônica com o jornal, mesmo com o negaceio de Braga, deixa marcas na obra. Escrita para ser lida quase simultaneamente à escrita, a crônica tem uma relação ambígua com o tempo. Certamente, mesmo na busca da aparente conversa fiada, ela se relaciona com seu tempo de leitura. Basta comparar os textos dos grandes cronistas brasileiros – além de Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino – com os fatos da vida social e política que os circundavam para dar muitas vezes outro peso à leitura. Mesmo sem a busca da alegoria, uma crônica sempre dialoga com a notícia com a qual divide o espaço no papel. Assim, a crônica pode ser um exercício de esquiva ou de interpretação; uma busca de ar ou a exigência de um fôlego a mais da inteligência.

Além disso, a crônica tem outras relações com o jornal. Em primeiro lugar no campo da linguagem. Se a notícia deve ser vazada pela busca da objetividade ou, no mínimo, da isenção, a crônica é carregada de individualidade e emoção. Há no entanto um parentesco entre os dois gêneros, a crônica e o jornalismo, que parece alimentar os dois lados, em regime de vaivém. A crônica aprendeu com o jornalismo que é preciso escrever para todos (não há leitor ideal, como na literatura, que supõe um receptor culto e ciente de seus códigos), e o jornalismo ganhou da crônica a certeza que o texto bem escrito é mais eficiente que aquele apenas correto. Os dois lados saíram ganhando nessa convivência.

Por fim, talvez seja o momento de perceber certo esgotamento do projeto lírico de Braga no âmbito do jornalismo contemporâneo. O que fica, como lição insuperável de estilo e sabedoria, além do prazer imenso que brota da leitura dos poemas-crônicas-contos-narrativas de Rubem Braga, talvez tenha agora chegado ao estado literário mais clássico, que cabe mais ao livro que ao periódico. Assim como os textos de Braga borboleteavam em torno da notícia em busca de uma iluminação possível num mundo de relações massificadas, a crônica hoje precisa trazer outros elementos ao embate com o emburrecimento e nivelamento do mundo. A poesia, por si só, talvez não dê conta do abismo em que nos metemos e no qual o jornalismo afunda de forma nunca vista em sua trajetória. O velho Braga, talvez, preferisse o silêncio.

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