Fato pouco conhecido dos brasileiros, a invenção da máquina de escrever pelo padre paraibano Francisco João de Azevedo é tema do novo livro do romancista paranaense
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 12/01/2013
Um dos autores mais reconhecidos de sua geração, com vários livros premiados, entre eles Hóspede secreto, Um amor anarquista e Chove na minha infância, o paranaense Miguel Sanches Neto acaba de lançar novo livro, A máquina de madeira, no qual conta, de forma romanceada, baseado em fatos históricos, a vida do padre paraibano Francisco João de Azevedo, que no final da década de 1850, no Recife, inventou “uma máquina taquigráfica”. A criação, que revolucionaria a maneira de lidar com a escrita em todo o mundo, foi reconhecida não só na província de Pernambuco como também na corte, onde a peça foi apresentada – e premiada pelo imperador dom Pedro II – durante a Exposição Nacional de 1861, na qual o padre esteve presente, depois de ter feito uma exaustiva viagem de navio até o Rio de Janeiro.
Até aí tudo bem, só que a descoberta do religioso brasileiro, que deveria ser apresentada no ano seguinte em Londres – para onde acabou não sendo enviada, por falta de apoio das autoridades –, nos tempos seguintes seria patenteada pela Remington, ficando os americanos com a glória da invenção da máquina de escrever.
Professor de literatura na Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Oeste do Paraná, Miguel Sanches Neto conta que a maior dificuldade para elaborar o romance foi a pouca informação existente sobre o padre Francisco de Azevedo, que apesar da importância da sua invenção, continua praticamente desconhecido no Brasil. “Se por um lado isso foi um problema, por outro permitiu que eu trabalhasse o livro com mais liberdade e que a imaginação não ficasse sob os fardos da história”, disse o escritor, em entrevista ao Pensar.
É pouco conhecida no Brasil a saga do padre Francisco João de Azevedo, o inventor da máquina de escrever. O que o levou a recuperar a história?
O que me seduziu nesse episódio obscuro da história das ideias no Brasil, entre outras coisas, foi a possibilidade de trabalhar com um tipo de comportamento padrão entre nós, com um dos centros da identidade nacional. Somos vistos sempre a partir de nossas riquezas naturais e nunca a partir de nossas melhores mentes. O Brasil não consegue ser uma caixa de ressonância para inventores, cientistas e intelectuais. Nós não nos identificamos com os que pensam, mas com os que cantam, praticam esportes etc. Então, o meu padre Azevedo é personagem símbolo de uma classe desperdiçada pelo país. A sua história ilumina a história nacional.
O que fez dele uma pessoa diferente?
Órfão, acabou estudando com muito esforço e encontrando no sacerdócio a única forma de ascensão social. Forma-se em Olinda, em cujo seminário havia mais aulas de ciência do que de religião. Tudo o que ele queria era ser inventor, e se tornou uma pessoa proeminente no Recife. Em 1859, uma de suas invenções, uma máquina taquigráfica, venceu a exposição provincial. Ele foi mandado ao Rio de Janeiro, para a Exposição Nacional de 1861, e ganhou a medalha de ouro, concedida pelo próprio imperador Pedro II. Tudo estava pronto para ele ir para a Exposição Universal de Londres, em 1862, mas ele acabou não indo. Estudo ficcionalmente os descaminhos dessa invenção, que acabou patenteada pela Remington. Paralelamente a isso, mostro o amor do padre por uma escrava alforriada, no qual ele encontra o único conforto. Um país de escravocratas não podia mesmo ser contemporâneo da civilização.
Há uma boa literatura sobre o padre?
O grande problema que enfrentei foi justamente esse, a escassez de dados sobre o padre. Há duas biografias lacônicas e informações muito contraditórias. Isso foi um problema na hora de me inteirar da vida do meu personagem. Por outro lado, permitiu que o romancista trabalhasse mais livre e que a imaginação não ficasse sob os fardos da história. Tive que fazer um romance lacunar porque pouco ficou da vida de Azevedo. O que era restrição de informações se constituiu em um estilo. O romance é cheio de áreas corroídas, e buracos narrativos, e isso também é uma forma de representar, pela linguagem, a circunstância de esquecimento em que viveu o padre.
Essa possibilidade de misturar realidade com ficção acabou lhe dando mais liberdade para criar?
Os fatos principais, quase todos eles, são históricos. Funcionam como um esqueleto. Esse esqueleto dá sustentação ao romance, e surgiu da leitura de documentos sobre o personagem. A esses ossos eu acrescentei a carne e sangue da ficção. Uma ficção que fui buscar em crônicas e matérias jornalísticas da época, para dar verossimilhança ao conjunto. A parte ficcional é a vida interior dos personagens – isso não pode ser encontrado em pesquisas documentais, tem que ser invenção do escritor, e nesse instante só podemos contar com nossa intuição.
Depois de muitos anos fazendo resenhas e críticas literárias para jornais e revistas do Paraná e outros estados, há algum tempo você resolveu parar. O que o levou a tomar essa decisão?
Muitos fatores, da dificuldade de falar de autores com quem convivo à recepção irritadiça de alguns pseudogênios, do grande número de bons lançamentos à baixa remuneração para a crítica (paga com a mesma tabela da crônica), mas o principal motivo talvez tenha sido a necessidade de mais tempo para escrever meus romances. Acabava lendo coisas que não me interessavam como escritor, e na minha idade, estou com 47 anos, o capital tempo vai ficando escasso.
Daí ter optado por continuar vivendo em Ponta Grossa, para ter mais tempo de se dedicar à escrita?
Não foi um projeto esta vida no interior do Paraná. Na minha juventude, sonhei em morar em São Paulo, Rio, Nova York, Madri ou Barcelona. Para mim, só poderia ser escritor nesses espaços altamente culturais. Mas a falta de opção profissional e o fato de não conhecer ninguém (venho de uma família de agricultores pobres, pouco ou nada alfabetizados) me empurraram para onde havia alguma chance de trabalho. Fiz concurso para professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa em 1993 e mudei-me para a cidade com o intuito de demorar uns três ou quatro anos. Como fui bem recebido, acabei ficando. E agora é tarde para uma mudança de rota. Quando resolvi problemas básicos, pude habitar literariamente a cidade, encontrando tempo para ler e escrever. Foi a partir de Ponta Grossa, atualmente com 330 mil habitantes, que fiz a minha trajetória de crítico e escritor. Aqui, resolvo a vida de maneira mais fácil e mais rápida, vivendo num isolamento criativo.
Você tem acompanhado a produção literária do país. O que tem achado?
É um momento muito rico do mercado editorial brasileiro. Trinta anos atrás, seria impossível alguém jovem pensar em viver de literatura. Como todos da minha geração, fui em busca de empregos que me permitissem escrever – trabalhei como agricultor, técnico agrícola, peão de fazenda, professor de ensino médio e revisor –, mas hoje há espaço para o novo autor, desde que ele escreva romance, que é gênero contemporâneo por excelência. Profissionalizou-se a produção. Não podemos acreditar que a quantidade baixe a qualidade. Ao contrário, ela aumenta a chance dos bons livros e das obras-primas. Há prêmios, bolsas, festas, encontros e encomendas de livros. O Brasil vive uma efervescência literária.
Algum novo projeto em andamento?
Em meados de 2012, fui contratado pela Editora Intrínseca para escrever um romance de história alternativa. Tenho que imaginar o que teria acontecido com o Brasil se Getúlio Vargas tivesse apoiado Hitler. Trabalho, no momento, nesse romance, que tenho de entregar até janeiro de 2014. Esse foi o primeiro projeto de literatura nacional da Intrínseca, uma editora de grande sucesso, que só publicava estrangeiros. Mais um sinal de que a literatura brasileira talvez tenha futuro, a despeito da opinião daqueles que acham que ela acabou na década de 1950.
Até aí tudo bem, só que a descoberta do religioso brasileiro, que deveria ser apresentada no ano seguinte em Londres – para onde acabou não sendo enviada, por falta de apoio das autoridades –, nos tempos seguintes seria patenteada pela Remington, ficando os americanos com a glória da invenção da máquina de escrever.
Professor de literatura na Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Oeste do Paraná, Miguel Sanches Neto conta que a maior dificuldade para elaborar o romance foi a pouca informação existente sobre o padre Francisco de Azevedo, que apesar da importância da sua invenção, continua praticamente desconhecido no Brasil. “Se por um lado isso foi um problema, por outro permitiu que eu trabalhasse o livro com mais liberdade e que a imaginação não ficasse sob os fardos da história”, disse o escritor, em entrevista ao Pensar.
É pouco conhecida no Brasil a saga do padre Francisco João de Azevedo, o inventor da máquina de escrever. O que o levou a recuperar a história?
O que me seduziu nesse episódio obscuro da história das ideias no Brasil, entre outras coisas, foi a possibilidade de trabalhar com um tipo de comportamento padrão entre nós, com um dos centros da identidade nacional. Somos vistos sempre a partir de nossas riquezas naturais e nunca a partir de nossas melhores mentes. O Brasil não consegue ser uma caixa de ressonância para inventores, cientistas e intelectuais. Nós não nos identificamos com os que pensam, mas com os que cantam, praticam esportes etc. Então, o meu padre Azevedo é personagem símbolo de uma classe desperdiçada pelo país. A sua história ilumina a história nacional.
O que fez dele uma pessoa diferente?
Órfão, acabou estudando com muito esforço e encontrando no sacerdócio a única forma de ascensão social. Forma-se em Olinda, em cujo seminário havia mais aulas de ciência do que de religião. Tudo o que ele queria era ser inventor, e se tornou uma pessoa proeminente no Recife. Em 1859, uma de suas invenções, uma máquina taquigráfica, venceu a exposição provincial. Ele foi mandado ao Rio de Janeiro, para a Exposição Nacional de 1861, e ganhou a medalha de ouro, concedida pelo próprio imperador Pedro II. Tudo estava pronto para ele ir para a Exposição Universal de Londres, em 1862, mas ele acabou não indo. Estudo ficcionalmente os descaminhos dessa invenção, que acabou patenteada pela Remington. Paralelamente a isso, mostro o amor do padre por uma escrava alforriada, no qual ele encontra o único conforto. Um país de escravocratas não podia mesmo ser contemporâneo da civilização.
Há uma boa literatura sobre o padre?
O grande problema que enfrentei foi justamente esse, a escassez de dados sobre o padre. Há duas biografias lacônicas e informações muito contraditórias. Isso foi um problema na hora de me inteirar da vida do meu personagem. Por outro lado, permitiu que o romancista trabalhasse mais livre e que a imaginação não ficasse sob os fardos da história. Tive que fazer um romance lacunar porque pouco ficou da vida de Azevedo. O que era restrição de informações se constituiu em um estilo. O romance é cheio de áreas corroídas, e buracos narrativos, e isso também é uma forma de representar, pela linguagem, a circunstância de esquecimento em que viveu o padre.
Essa possibilidade de misturar realidade com ficção acabou lhe dando mais liberdade para criar?
Os fatos principais, quase todos eles, são históricos. Funcionam como um esqueleto. Esse esqueleto dá sustentação ao romance, e surgiu da leitura de documentos sobre o personagem. A esses ossos eu acrescentei a carne e sangue da ficção. Uma ficção que fui buscar em crônicas e matérias jornalísticas da época, para dar verossimilhança ao conjunto. A parte ficcional é a vida interior dos personagens – isso não pode ser encontrado em pesquisas documentais, tem que ser invenção do escritor, e nesse instante só podemos contar com nossa intuição.
Depois de muitos anos fazendo resenhas e críticas literárias para jornais e revistas do Paraná e outros estados, há algum tempo você resolveu parar. O que o levou a tomar essa decisão?
Muitos fatores, da dificuldade de falar de autores com quem convivo à recepção irritadiça de alguns pseudogênios, do grande número de bons lançamentos à baixa remuneração para a crítica (paga com a mesma tabela da crônica), mas o principal motivo talvez tenha sido a necessidade de mais tempo para escrever meus romances. Acabava lendo coisas que não me interessavam como escritor, e na minha idade, estou com 47 anos, o capital tempo vai ficando escasso.
Daí ter optado por continuar vivendo em Ponta Grossa, para ter mais tempo de se dedicar à escrita?
Não foi um projeto esta vida no interior do Paraná. Na minha juventude, sonhei em morar em São Paulo, Rio, Nova York, Madri ou Barcelona. Para mim, só poderia ser escritor nesses espaços altamente culturais. Mas a falta de opção profissional e o fato de não conhecer ninguém (venho de uma família de agricultores pobres, pouco ou nada alfabetizados) me empurraram para onde havia alguma chance de trabalho. Fiz concurso para professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa em 1993 e mudei-me para a cidade com o intuito de demorar uns três ou quatro anos. Como fui bem recebido, acabei ficando. E agora é tarde para uma mudança de rota. Quando resolvi problemas básicos, pude habitar literariamente a cidade, encontrando tempo para ler e escrever. Foi a partir de Ponta Grossa, atualmente com 330 mil habitantes, que fiz a minha trajetória de crítico e escritor. Aqui, resolvo a vida de maneira mais fácil e mais rápida, vivendo num isolamento criativo.
Você tem acompanhado a produção literária do país. O que tem achado?
É um momento muito rico do mercado editorial brasileiro. Trinta anos atrás, seria impossível alguém jovem pensar em viver de literatura. Como todos da minha geração, fui em busca de empregos que me permitissem escrever – trabalhei como agricultor, técnico agrícola, peão de fazenda, professor de ensino médio e revisor –, mas hoje há espaço para o novo autor, desde que ele escreva romance, que é gênero contemporâneo por excelência. Profissionalizou-se a produção. Não podemos acreditar que a quantidade baixe a qualidade. Ao contrário, ela aumenta a chance dos bons livros e das obras-primas. Há prêmios, bolsas, festas, encontros e encomendas de livros. O Brasil vive uma efervescência literária.
Algum novo projeto em andamento?
Em meados de 2012, fui contratado pela Editora Intrínseca para escrever um romance de história alternativa. Tenho que imaginar o que teria acontecido com o Brasil se Getúlio Vargas tivesse apoiado Hitler. Trabalho, no momento, nesse romance, que tenho de entregar até janeiro de 2014. Esse foi o primeiro projeto de literatura nacional da Intrínseca, uma editora de grande sucesso, que só publicava estrangeiros. Mais um sinal de que a literatura brasileira talvez tenha futuro, a despeito da opinião daqueles que acham que ela acabou na década de 1950.
A máquina de madeira
• De Miguel Sanches Neto
• Editora Companhia das Letras, 246 páginas, R$ 36
• De Miguel Sanches Neto
• Editora Companhia das Letras, 246 páginas, R$ 36
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