sábado, 12 de janeiro de 2013

O homem diluído (Miguel de Unamuno) - Paulo Betancur‏

Novela do espanhol Miguel de Unamuno mescla farsa metalinguística e reflexão acerca da condição humana 

Estado de Minas: 12/01/2013 
Quando se fala no espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) imediatamente se recorda do pensador de Do sentimento trágico da vida (1913), onde temos o choque entre o pensamento científico e a moral religiosa, o que provoca no autor a questão urgente do sentido da existência. O antagonismo inconciliável entre o coração e a razão leva Unamuno ao “abismo do desespero”, lugar destinado à mais ferrenha luta do homem para sobreviver em si mesmo. Há ainda o ensaísta de Vida de Dom Quixote e Sancho (1905), no qual ele inverte a ideia comum de criador e criatura, lançando a tese de que o Cavaleiro da Triste Figura é o legítimo responsável por Cervantes. 

Porém, pouco ou quase nunca nos recordamos de Unamuno como notável escritor, a experimentar vários gêneros – e a ficção teve a sorte de ser um desses gêneros eleitos. No reino da narrativa, Unamuno, embora adaptando a linguagem ao formato exigente, não perdeu o jogo metalinguístico de que se revelou mestre nem a ironia que o levou a escrever livros nos quais há sempre um território contaminado, povoado de armadilhas e sustentado por um tom cuja linguagem anda na contramão de seu tempo. E, se anda na contramão, anda na de qualquer tempo, valendo a afirmação para a nossa época.

Na virada do século 19 para o 20, Unamuno pulava o muro das fronteiras da ficção, criando, no lugar da novela, a “nivola” (neologismo impossível de traduzir, mantido na versão brasileira, a lembrar algo entre “névoa”, “esboço” e “noveleta”). 

A razão para a alteração do gênero vem de duas fontes: a primeira, e principal, é a identidade do protagonista da história, Augusto Pérez, uma identidade um tanto camaleônica, que se faz, desfaz e refaz. E, sobretudo, por conta da natureza dessa identidade, que parece nem ser apreensível. Pequeno burguês na casa dos 40, perdeu pai e mãe e herdou uma boa casa e quantia em dinheiro suficiente para que não precise trabalhar. Com isso, sustenta um temperamento que aos olhos dos demais é o de um homem distraído e, de fato, culto. A segunda razão para o gênero renovador nas letras não só da Espanha, mas da literatura universal, é a linguagem na qual a “nivola” se estrutura. Uma infinidade de diálogos e monólogos constituiu-se em toda a condução da trama quase sem trama.

Augusto Pérez nunca amou. E agora... ama ensandecidamente. Mas o amor, experiência inédita em sua existência, desperta-o para o Amor, com maiúscula e sentimento radical de afeto voltado não mais a uma mulher (Eugenia Domingo del Arco, classe média, casa hipotecada, a quem Augusto salva financeiramente) e sim a muitas mulheres, quase todas que passam por ele. Ama a uma mais que a tudo e a partir daí parece acordar e ver a beleza em todo lugar, ou melhor, em todas. Chega mesmo a flertar com a mulher que lhe cuida da roupa.

No entanto, nunca avança além do discurso. Sua boca não beija, realiza preleções, declarações. Suas mãos não acariciam, gesticulam a afirmação de um sentimento maior que ele não ousa confirmar pela ação. O resultado, amargo, é que ele, sem perceber (e sem que o leitor perceba), vai sendo usado.

Trata-se de um gentil-homem, bom caráter, e provoca pena e, mesmo, comoção nas duas mulheres que sua paixão bafeja. Amor, efetivamente, parece ter por Eugenia, de cujos tios se torna amigo, tantas vezes visita a moça, que quase nunca está. Ela tem um outro (de fato), e joga com isso. Rosário, a moça das roupas, alerta-o que está sendo enganado, e declara que ele a comove. Não se alarma que dele tenham pena. Há um misto de fantasia desencontrada no tempo e um excessivo orgulho que as circunstâncias não sustentam mais.

Fica sabendo que Eugenia já tem o coração comprometido, consegue um emprego para o rival num lugar distante, na esperança de que este, interesseiro, desapareça. A moça viaja com ele e com ele fica. Foi enganado. Só consegue pensar: “Ela também o enganará como fez a mim”. 

Orfeu e Brás Cubas Nesse meio-tempo encontra um cachorro de rua a quem se afeiçoa e dá-lhe o nome de Orfeu. No animal encontra também o interlocutor ideal para seus monólogos e o parceiro de uma sintonia afetiva capaz da fidelidade impossível nos seres humanos.

Pensa em matar-se. Fala isso a um amigo em diálogos filosóficos. Mesmo quando há verdade e sinceridade, Augusto parece vocacionado a uma solidão. O que o compensaria seria sentir-se um “eu” tão convincente para si mesmo e, assim, para os demais. Mas o veem com uma espécie de respeito embebido em indiferença. Ou com um humor de fundo desrespeitoso, porém encoberto pelo discurso de sala de visitas.

Narrado sempre em 3ª pessoa, num dos últimos capítulos do livro entra uma 1ª pessoa narrando: o próprio Unamuno, que confessa ter inventado Augusto e, assim, ele não pode suicidar-se nem que queira. Afinal, um ser fictício não tem vida suficiente para tirar. Todavia, claro, ainda resta ao autor do livro o recurso de matá-lo. Um dos pontos altos da “nivola” é uma entrevista entre personagem e autor. Augusto vai à casa de Unamuno e debate com este a condição... dos dois! Unamuno considera um abuso a ameaça de sua própria criatura, que invoca uma das principais teses do escritor, a de que Quixote é que criou Cervantes. “Eu vivo para que você possa viver” é, em suma, o diagnóstico de Augusto Pérez. Unamuno o despacha, indignado.

Na sequência, o desafortunado protagonista (somente afortunado pecuniariamente) morre do coração. Em seguida, o cão vela o dono até que morre também. Comentário do casal de criados de Augusto: “E depois dizem que o amor não mata!”.

A súmula da novela (sim, novela) do produtivo autor espanhol é um misto de farsa metalinguística, tragicomédia amorosa e reflexão enviesada acerca da condição humana, em moldes que vão de Pirandello (a representação de nossa personalidade e intenções) a Machado de Assis, na medida em que durante todo o percurso a história parece debruçar-se sobre si mesma, avaliar-se, e cada cena narrada produz um pensamento que sintetiza as sempre renovadas ilusões. Como se fosse impossível apreender o essencial ou só apreendê-lo tarde demais.

Paulo Betancur é escritor e crítico.


Névoa
• De Miguel de Unamuno, tradução de Fabiano Calixto
• Editora Estação Liberdade, 256 páginas, R$ 41

Nenhum comentário:

Postar um comentário