O Globo - 21/01/2013
Tropeça-se a cada passo em relatos
de pessoas desassistidas
pelos serviços de saúde. Mas
encontrar os responsáveis pela
omissão de socorro ou imprudência,
imperícia ou negligência, especialmente
no Brasil, constitui um fato
extraordinário. A principal razão da
dissociação entre a frequência dos danos
causados a crianças e adultos por
instituições que deveriam protegerlhes
e o indiciamento de quem os causou
é a finitude da vida. Separar acertos
e erros da intervenção médica em
casos de sucessos e desfechos indesejados
requer um sólido conhecimento
sobre as possibilidades e limites do repertório
de alternativas diagnósticas e
terapêuticas e muita ênfase na qualidade
da atenção. A avaliação permanente
da qualidade das atividades da
saúde é a ferramenta adequada para
distinguir e afirmar boas práticas, que
por sua vez pressupõem compromissos
e responsabilidades explícitas pelas
ações e cuidados prestados. Os esforços
para organizar um sistema de
avaliação de qualidade pressupõem a
perspectiva de atingir crescentes níveis
de saúde e melhoria do desempenho
dos serviços assistenciais.
Sem saber exatamente em que ponto
estamos na construção de nosso sistema
de saúde e para onde vamos —
ora somos o farol do mundo com nosso
sistema universal e igualitário, ora o
país que desponta como sede de um
portentoso mercado de planos de saúde
—, a definição de encargos é uma
missão quase impossível. A necessidade
de proteção simultânea de interesses
públicos e privados, incluindo
aqueles que extrapolam os limites do
sistema de saúde, funciona como um
poderoso escudo antirresponsabilidade.
Como ninguém é responsável, todos
denunciam. O preâmbulo de
qualquer discurso sobre saúde é a denúncia
sobre faltas. O que varia é a ênfase
na falta. Uns preferem a falta de
gestão; outros, de financiamento. São
essas falsas pistas que estimulam temporadas
de caça sazonais e seletivas
aos médicos, aos medicamentos, aos
leitos, aos equipamentos e resguardam
a troca de uma política de saúde
por um punhado de interesses particulares
e imediatistas.
O caso Adrielly-Adão é insólito porque
rompeu com as desculpas sobre a
quantidade de recursos. O sumiço do
substituto do neurocirurgião no plantão
da emergência que deveria ter socorrido
uma criança baleada horrorizou
porque desvela o estado de corrupção,
no sentido do processo ou ato
de tornar-se apodrecido, da rede assistencial
pública e privada. Adrielly
chegou viva ao Hospital Salgado Filho,
seu quadro clínico era de extrema
gravidade, e exatamente por isso foi
encaminhada para um serviço de
emergência. Em circunstâncias habituais,
riscos à vida, sobretudo de uma
criança, comovem e mobilizam solidariedade
imediata. Contudo, usos e
costumes aceitos e as normas oficiais
que regem a dinâmica interna dos
serviços de saúde nem sempre permitem
uma interação humana entre
pacientes e quem os atende.
A existência de rotinas largamente
disseminadas, como a sublocação da
vaga de médicos e enfermeiros nos
serviços públicos de saúde, provocou
espanto, em função da associação automática
entre alteração de identidades
com a desonestidade e inaplicabilidade
da regra a profissionais tão
dedicados como os de saúde. Mas as
explicações para a existência de um
mercado colateral de trabalho são banais.
Quem obtém melhor remuneração
em outros postos opta por manter
o cargo com o intuito de obter vantagens
na aposentadoria, e contrata
seus substitutos, mediante a transferência
do salário para colegas geralmente
situados em posições iniciais
na carreira. Trata-se de uma autorregulação
consentida e legitimada, que
falha quando as oportunidades de
maiores remunerações permitem a
recusa de plantões em feriados, fins
de semana, locais distantes da residência
etc. O segundo motivo de assombro
para quem acompanha o desenrolar
da apuração do não atendimento
a Adrielly foi a apelação para o
álibi de inexorabilidade da morte. A
intenção de espanar a ignorância (como
se alguém acreditasse que os serviços
de emergência realizam milagres)
e apaziguar os ânimos exaltados
pelo descaso só serviu para expor ainda
mais as entranhas pútridas da rede
assistencial. O terceiro motivo de perplexidade
deveu-se à constatação,
particularmente dos leigos, de que as
engrenagens, movidas a pagamentos
por plantões de gente desconhecida
pelos chefes, atendendo pessoas como
coisas, traduzíveis em procedimentos
remunerados e metas de produção,
revelam a péssima administração
da saúde.
As soluções apresentadas pela prefeitura
do Rio de Janeiro e pelo Ministério
da Saúde também assustam. Implantar
métodos de apuração de presença
de médicos não responde sequer
à preservação do decoro perante
a tragédia, quanto mais ao enfrentamento
real da situação da saúde.
Apertar os controles da presença de
quem não existe é completamente
desnecessário. A introdução de artefatos
tecnocráticos hi-tech, como o
ponto biométrico, e a imposição de
indicadores artificiais de performance
prenunciam uma nova sequência
de sofrimentos e escândalos. Os plantões
continuam esvaziados e os prazos
para o acesso de pacientes com
câncer no SUS e para consultas nos
planos privados de saúde não estão
sendo cumpridos. A sugestão dos parentes
das vítimas de mau atendimento
parece mais promissora. O desejo
manifesto por quem experimentou a
mistura da dor decorrente da perda
de familiares com a humilhação do
mau atendimento é que os casos não
se repitam. A diferença entre a reiteração
de alternativas irreais e as perspectivas
construídas com sentimentos
e valores genuínos é cristalina.
Médicos não somem, não deixam
de trabalhar. Adão seguiu exercendo
importantes atividades como cirurgião
de coluna de um hospital privado.
A responsabilidade direta pela omissão
de atendimento de Adrielly será
apurada. Porém, sem o exame criterioso
e das responsabilidades indiretas
de professores, pesquisadores, entidades
profissionais e empresariais e
dos políticos, as urgentes tarefas de
organização de um sistema público
democrático de qualidade ficarão
mais uma vez adiadas.
Ligia Bahia é professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
ligiabahia55@gmail.com
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