Mariana Peixoto
Estado de Minas: 01/02/2013
Jorge Mautner e seu violino se tornaram ícones para a nova geração, fã do clássico Maracatu atômico
Depois de uma sessão especial do documentário Jorge Mautner – O filho do Holocausto em Londres, Heitor D’Alincourt, que codirigiu o longa-metragem com Pedro Bial, ouviu de espectadores que aquele filme deveria ser ficção, pois uma pessoa como a retratada na tela não poderia existir. Aos 72 anos, Mautner se diverte com tal comentário. “Sou simultâneo. Vivo essa simultaneidade atráves da poesia, da música e da arte. É a infância que deflagra tudo, o que sou hoje é uma continuidade desse processo.” Tal afirmativa vem ao encontro da maneira como são retratadas as sete décadas de vida do poeta, escritor, violinista, compositor, cineasta, artista plástico e cantor – criador múltiplo rotulado, com certo equívoco, de “maldito”.
O filme entra em cartaz no circuito comercial – em BH, infelizmente, serão apenas duas sessões, no BH Shopping – depois de participar de festivais nacionais e estrangeiros. O documentário tradicional – com narrativa cronológica e linear alicerçada por depoimentos e imagens de arquivo – tem seu lado transgressor tirado do próprio personagem título. O título, por sinal, veio do livro O filho do Holocausto (2006), em que Mautner relata sua infância e juventude (de 1941 a 1958). Para as gerações que o conheceram a partir da regravação de Maracatu atômico feita por Chico Science e Nação Zumbi (de 1996, foi a primeira de uma série de novas versões de cantores e bandas que vêm relendo, com respeito e autoralidade, a obra de Mautner), o filme é obrigatório, pois lança luzes sobre a obra de um artista que nem sempre recebeu o reconhecimento devido.
Colocando a música em primeiro plano – a trilha sonora foi lançada no final de 2012 –, o documentário traz as principais canções de Mautner (Lágrimas negras, O vampiro, Olhar bestial e Tarado, entre outras) gravadas em pocket show com a banda formada por Pedro Sá (guitarra), Kassin (baixo), Domenico Lancelotti (bateria) e Berna Ceppas (teclados e efeitos), além de Nelson Jacobina, o parceiro de Mautner por 40 anos, que morreu em 31 de maio. Também participaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, figuras essenciais para sua carreira e companheiros no exílio londrino durante a ditadura militar. A parte musical é intercalada com narrativa documental.
Candomblé O título O filho do Holocausto remete à origem de Mautner. Nascido no Rio de Janeiro, ele é filho de um judeu austríaco que chegou ao país para escapar da perseguição nazista. Se a primeira infância foi carioca – “A babá me colocava para dormir ouvindo tambores do candomblé”, lembra ele –, dos 7 aos 14 anos o músico viveu em São Paulo. “Minha mãe se casou de novo. Num misto de amor e ódio com meu padrasto, que fazia bico nas rádios Record e Tupi, eu ficava ouvindo Jackson do Pandeiro e Aracy de Almeida”, relembra. Seu primeiro livro, Deus da chuva e da morte, foi escrito quando ele tinha 15 anos. Mas só em 1962 o aluno expulso de Dante Alighieri, tradicionalíssimo colégio paulistano, veria essa obra publicada (posteriormente, ela lhe renderia o Prêmio Jabuti). Naquela época, Jorge já havia dado os passos iniciais como compositor (O vampiro é dessa safra).
O músico foi parar no Partido Comunista e passou um período em Nova York até chegar a Londres. Nesse cenário, rodou o filme O demiurgo (1972) e se envolveu com os tropicalistas – Caetano e Gil se tornaram seus parceiros desde então. O filho do Holocausto acaba dialogando com outros dois documentários, também da safra de 2012, que giram em torno do Tropicalismo: Tropicália, de Marcelo Machado, já lançado, e Futuro do pretérito: Tropicalismo now!, de Francisco César Filho e Ninho F. Moraes, ainda inédito no circuito comercial.
“O Tropicalismo foi o apogeu do amálgama de que falou, em 1823, o José Bonifácio, sobre as diferenças entre povos e culturas no Brasil. Temos a cultura mais original do planeta, nossa história é resultante do romantismo, das culturas indígena e negra”, continua. Incansável, ele segue em plena atividade. Depois da morte de Jacobina, coautor de Maracatu atômico e Lágrimas negras, o cantor passou um período sem fazer shows, mas já voltou a se apresentar. Em formato mais intimista, Mautner empunha seu violino ao lado do maranhense Glad Azevedo; com banda, é acompanhado pela Tonno, de Bem Gil.
Para além da música, o agora consultor do Ministério dos Esportes para a cultura pretende “irradiar a ideia do amálgama de que falava José Bonifácio” para o período da Copa do Mundo. Quem assistiu à versão de Macaratu atômico apresentada pelo rapper BNegão no encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres não tem dúvida: Jorge Mautner sabe do que está falando.
JORGE MAUTNER, O FILHO DO HOLOCAUSTO
Direção: Pedro Bial e Heitor D’Alincourt
O filme está em cartaz às 19h30 e às 21h40, no BH 1. Excepcionalmente no domingo, haverá apenas a sessão das 21h40. Classificação: 10 anos
Jacobina e Mautner em cena do documentário |
“No último show dele, em Jacareí (interior de São Paulo, durante reunião dos Pontos de Cultura), demos um bis de 45 minutos. Imagine, ele estava no quarto ano de uma metástase violenta. O Nelson tomava metadona, tinha muitas dores e, durante quatro anos, participou de tudo: show, disco da Orquestra Imperial, a série Oncotô?, da TV Brasil. Participava da militância no Partido Verde, Partido Comunista, UNE, ONGs. No palco, as dores passavam, era impressionante. O Nelson morreu horas depois daquele show. No voo, durante a volta para São Paulo, no meio da dor, ele conseguia rir. Eu o provocava dizendo: ‘Vocês, verdes, vão deixar a gente sem luz’. O Nelson vai estar sempre comigo, é insubstituível, uma pessoa samurai. A música que fizemos para o disco da Orquestra (Fala chorando) diz assim: ‘Lágrimas são páginas/ Cheias de palavras que você/ Não pode mais continuar falando/ Porque a memória emudece a tua voz/ E então você fala chorando.’
É uma música também sobre a morte.”
>> Jorge Mautner, sobre o parceiro Nelson Jacobina, falecido em maio de 2012
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