sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A verdadeira luta - Carlos Heitor Cony


Há 165 anos, o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels consagrava como lei determinante da história a luta de classes. E as classes, esquematizadas ao limite, reduziam-se a duas: a do capital e a do trabalho. A aventura (ou a tragédia do homem) era condicionada pelos atritos ou pela dominação descarada entre uma e outra. Paradoxalmente, tal conceito pecou pelo exagero e pela simplificação.
É possível que em 1848, e até há pouco tempo, a sociedade tivesse apenas duas classes marcadas por interesses conflitantes. Hoje, além das duas tradicionais, representadas historicamente pelo capital e pelo trabalho, surgiu uma nova classe que, pouco a pouco, assume a "pole position" e torna-se a dominante. A do jovem.
Não adianta demonizá-lo, como o fazia Nelson Rodrigues, taxando-o de "uma besta". Muito menos de divinizá-lo, como alguns movimentos nascidos a partir de 1968, achando que a pedra de toque da ética, do gosto e do comportamento é apenas o que eles pensam, querem e consomem.
Até meados do século 20 não havia tempo para ser jovem. Saía-se da infância (onde tudo era mais ou menos proibido ou permitido) e entrava-se na fase adulta, numa pré-maturidade responsável e antecipada decorrente da universidade, do primeiro emprego, do serviço militar ou do casamento precoce.
A faixa que mediava as duas idades era pejorativamente chamada de "cachorro maluco", cujo emblema era o adolescente com o rosto coberto de espinhas e as mãos calejadas de masturbação. Não tinha hora nem vez. Se comprava uma roupa, ela teria de ser necessariamente provisória, pois a cada mês o jovem espichava. O mesmo valia para os sapatos e as ideias. Mais tarde, eles teriam direito a roupas, sapatos e ideias definitivas.
Acontece que, sem muita consciência do que estavam fazendo, no início eles apenas lutavam pelo direito de serem levados a sério. Pouco a pouco tornaram-se uma classe, com uma consciência especifica, uma ética e uma estética próprias.
Enquanto os adultos cada vez mais se isolavam em seus condomínios fechados, em suas casas abastecidas de TV a cabo, os jovens ficaram gregários, procurando-se uns aos outros até com um certo desespero, para juntos consumir --e como são os grandes consumidores da vida moderna, eles ditam o que a indústria, o comércio e o lazer devem produzir e ser.
Não adianta reclamar se vamos a um restaurante careta e pedimos um prato mais sofisticado. Há que se contentar com o hambúrguer e o saquinho de batata frita. Na loja de discos, pedir um CD clássico causa estupor ao gerente, que nunca ouviu falar em Schumann ou em Mahler. Por que não levar uma Lady Gaga que faz tanto sucesso e provoca tanto engarrafamento?
Na base da pirâmide pela expressão numérica, o jovem empurrou o vértice não exatamente para cima, como seria lógico. Empurrou para os lados. O adulto desconfia que está sobrando. E mais tempo fica em casa, agarrado a valores que cada vez valem menos.
Certa vez, comentei com o Ruy Castro a ignorância da massa consumidora dos jovens no que diz respeito à música popular brasileira. Examinando uma lista das cem melhores produções do repertório nacional, elaborada por um plenário de jovens até 21 anos, verifiquei que a música brasileira começara com Elis Regina. Antes dela, nada existia. Nem Carmem Miranda, nem Noel Rosa, Lamartine Babo, Ary Barroso, muito menos Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Dorival Caymmi.
Ruy me corrigiu: Elis Regina também já era, o "Fiat" de nossa música popular é Ivete Sangalo. Isso já faz tempo, é possível que a própria Ivete seja contemporânea das Guerras Púnicas e da Marcha Triunfal de "Aída".
Bem, nada a fazer a não ser tocar os burros para frente, e não faltam burros na praça, a começar pelos cronistas e assemelhados, como o autor deste texto.
Eu era ainda jovem, quase criança, quando aprendi na Bíblia --que lá em casa era mais uma decoração na estante do que um objeto de leitura-- uma frase mais antiga do que o Manifesto Comunista de Marx e Engels, mais antiga do que as Guerras Púnicas, Elis Regina e Dalva de Oliveira. A frase era curta em palavras, mas longa em conteúdo: "o número de imbecis é infinito".
Mais tarde, aprendi a frase em latim: "Stultorum numerus infinitus est". E além de infinitos, criaram a verdadeira luta de classes que continuará por séculos e séculos.
Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000. Sua carreira no jornalismo começou em 1952 no "Jornal do Brasil". É autor de 15 romances e diversas adaptações de clássicos.

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