quinta-feira, 28 de março de 2013

O assunto é direito do trabalhador doméstico [tendências/debates]

folha de são paulo

CREUZA MARIA OLIVEIRA
O ASSUNTO É DIREITO DO TRABALHADOR DOMÉSTICO
Uma reparação histórica
Não se trata só de igualdade de direitos, mas de inclusão e reparação histórica, diante dos absurdos vividos por 8 milhões de domésticos
A origem do trabalho doméstico no Brasil é a escravidão.
A relação entre o senhor e seus escravos era de exploração, sobretudo daqueles que serviam à chamada casa grande. Com o advento da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, o trabalho doméstico continuou a ser exercido majoritariamente por mulheres negras -jovens e inclusive crianças-, vindas das cidades do interior do país para trabalhar nos grandes centros urbanos.
Nesse processo histórico, temos que destacar o valor social do trabalho doméstico para o desenvolvimento da economia e sociedade brasileira e até mesmo mundial, ao fortalecer as estruturas familiares.
No entanto, a visão da sociedade no geral, fundamentada no preconceito, é a de que o trabalho doméstico é uma atividade sem importância e que não gera lucro para o patrão.
Diante desse ponto de vista, permeado por machismo e racismo, sempre houve evidente desvalorização do trabalho doméstico. As mulheres foram submetidas a condições degradantes e desumanas no que se refere ao desempenho de suas atividades, não tendo nem sequer a proteção das leis trabalhistas como os demais trabalhadores.
Em virtude dessa realidade, que fere a dignidade do trabalhador (a) doméstico (a), surgiram organizações de defesa da igualdade de direitos entre essa e as demais categorias. A primeira delas foi a Associação de Trabalhadoras Domésticas, fundada em 1936, em Santos (SP), por Laudelina de Campos Melo.
Como consequência dessa luta, no ano de 1972, foi aprovada a lei 5.859, que garantiria o registro da carteira de trabalho e previdência social para os trabalhadores domésticos no Brasil. No ano de 2006, a lei 11.324 passou a assegurar estabilidade para gestantes, folgas nos feriados e a proibição do desconto de utilidade no salário da categoria.
Nem mesmo com esses avanços, o trabalho doméstico adquiriu a proteção das leis trabalhistas necessárias para igualá-lo às demais profissões celetistas. Por isso, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundamentada na chamada Agenda do Trabalho Decente, levou o tema para sua 99ª e centésima conferências, respectivamente nos anos de 2010 e 2011. Deu origem à Convenção 189 e à Recomendação 201, específicas para as trabalhadoras domésticas.
Hoje, no Brasil, depois de tantas reivindicações e lutas, é o momento da aprovação da PEC (proposta de emenda constitucional) 478/2010, conhecida como a PEC das domésticas. A emenda garante à categoria a extensão de 16 direitos já assegurados a outros trabalhadores.
Não se trata somente da igualdade de direitos, mas de inclusão e reparação histórica, diante dos absurdos já vivenciados por essas cerca de 8 milhões de trabalhadoras domésticas do país.
Diante da aprovação da PEC na votação de segundo turno no Senado Federal, o Brasil demonstra que está mudando de mentalidade. A justiça social está sendo feita para uma categoria que tem papel importante na construção deste país.
Por fim, há de se destacar que a luta das trabalhadoras domésticas, nesses 80 anos de organização sindical, teve apoio de vários segmentos do movimento social para dar visibilidade à categoria, tão especial e merecedora de justiça.



OTAVIO PINTO E SILVA
O ASSUNTO É DIREITO DO TRABALHADOR DOMÉSTICO
O fim do "servicinho"
Lembremos que no âmbito residencial não existe RH. O controle da jornada de trabalho deverá levar em conta as peculiaridades da atividade
O Direito do Trabalho regula uma espécie de relação jurídica, a saber, aquela que une as figuras do empregado e do empregador, por meio de contrato de trabalho.
O empregador é uma pessoa ou entidade que contrata trabalhadores para prestar serviços com pessoalidade, de forma não eventual, mediante subordinação e em troca de salários.
O conceito de empregador previsto na CLT está voltado para as empresas, o que levou a doutrina a efetuar a crítica de que algumas figuras específicas não se encaixam de forma adequada ao modelo proposto. É o caso, por exemplo, do empregador doméstico, que não é empresa e não exerce atividade econômica.
Por essa razão, foi necessária a diferenciação desse tipo de relação de emprego, o que se deu por meio da lei nº 5.859/70: ao definir o trabalho doméstico, a referida lei esclareceu que nessa relação jurídica o trabalhador presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas.
Justifica-se assim uma regulamentação diferenciada da relação de trabalho doméstico, pois não é de se exigir desse tipo de empregador uma organização idêntica à de uma empresa; mas, por outro lado, também não se pode negar que o acesso dos empregados domésticos à idêntica proteção trabalhista garantida aos demais trabalhadores é uma questão de justiça.
Não surpreende, portanto, que o Congresso Nacional tenha aprovado emenda constitucional para igualar os direitos dos domésticos aos dos outros tipos de empregados.
Nesse aspecto, o Brasil assume uma postura de vanguarda e que certamente receberá os aplausos da comunidade internacional, pois segue diretrizes aprovadas em junho de 2011 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), contidas na Convenção 189, de valorização dos direitos humanos e de acesso ao trabalho decente.
O grande desafio, agora, é encarar a regulamentação do trabalho doméstico: afinal de contas, de nada valerá a mudança constitucional se a sociedade fugir da formalização dos contratos de trabalho.
É preciso estimular os empregadores domésticos a registrar os contratos de seus empregados, facilitando e desburocratizando os procedimentos relativos ao recolhimento de contribuições previdenciárias e depósitos de FGTS, com o uso da internet. Lembremos que no âmbito residencial não existe um departamento de pessoal ou de RH, encarregado de preencher guias e formulários para pagamentos bancários.
O controle da jornada de trabalho deverá levar em conta as peculiaridades da atividade, que muitas vezes é exercida sem qualquer fiscalização do empregador, pois ausente da residência em boa parte do dia. Não se pode exigir um cartão de ponto igual ao de uma empresa.
Se o trabalhador morar na residência da família, será preciso que as partes ajustem seu relacionamento de modo a garantir os direitos aos descansos diário, semanal e anual. O empregador terá que resistir à tentação de pedir um "servicinho" qualquer após o término da jornada diária, ou aos finais de semana.
Pode-se imaginar a adoção de um modelo de contrato bastante simplificado, com cláusulas básicas que estipulem as condições essenciais do trabalho, na perspectiva de facilitar o ajuste dos interesses das partes.
Enfim, todos os envolvidos -Estado, empregadores e empregados- teremos que encarar uma radical mudança cultural. Tempos de novas (e justas) garantias aos trabalhadores, mas também de compreensão para as dificuldades práticas que precisarão ser enfrentadas pelas famílias.

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