Luciane Evans
Estado de Minas: 17/04/2013
Por trás do crime, das sequelas para o corpo e para a alma, muitas vezes carregadas pelo resto da vida, milhares de mulheres brasileiras que se submetem a um aborto clandestino no país, como vem mostrando o Estado de Minas em série especial sobre o tema, se deparam com a eterna dúvida: em qual momento nasce a vida? De cunho moral, religioso e ético, a questão ganha foco no Brasil diante da decisão de entidades nacionais em propor a discriminalização do aborto, o que permitiria a interrupção de gravidezes de até 12 semanas. A posição, apesar de sugerida pelo órgão que representa 400 mil médicos, o Conselho Federal de Medicina (CFM), não é consenso na classe. Prova disso é o posicionamento de Minas Gerais, onde o Conselho Regional de Medicina (CRM) diz que “doutores são treinados para salvar vidas, não matá-las”. A resistência é tão grande que até em processos legais de interrupção de uma gravidez, como em caso de estupro, há especialistas que se recusam a fazer o procedimento, respeitando sua consciência e sua ética.
Tratada no âmbito da reforma do Código Penal Brasileiro, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, a proposta dos conselhos de Medicina e Psicologia, de acordo com o CFM, foi apresentada em março e se baseia na ideia de que a mulher deve ter autonomia para decidir por levar, ou não, uma gravidez de até três meses adiante, assim como é feito em outros países. Para essa decisão, o conselho contou com a colaboração de outras entidades, entre elas a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “Somos um total de 23 pessoas, entre médicos, filósofos, advogados e religiosos. Desses, 17 foram favoráveis ao aborto em até 12 semanas”, diz o médico e presidente da SBB, Cláudio Lorenzo, professor do Programa de Pós-Graduação de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado no Canadá em ética aplicada a ciências clínicas.
De acordo com ele, a discordância para o tema está no estatuto moral do embrião. “Na minha opinião pessoal, a vida humana é quando há uma relação com o outro, sentimentos e percepções proeminentes humanos. O embrião até 12 semanas não tem o sistema nervoso para estabelecer qualquer espécie de relação. Um bebê que seja capaz de sonhar e perceber coisas maternas tornou-se pessoa. Essa definição vem de Aristóteles, que definia que nesse período da gestação a criança era gente, ganhava alma. Nesse caso, apesar de o embrião não ser coisa, não posso comparar a questão moral de uma mulher que não deseja prosseguir uma gravidez em relação a algo que tem o potencial futuro de vida”, defende.
Para o presidente da Febrasgo, o obstetra Olímpio Morais, a questão é de saúde pública. “Não somos a favor do aborto, mas a favor do direito de a mulher decidir sobre o seu corpo.” Segundo ele, enquanto o país tratar o ato como crime, as mulheres que se submetem ao aborto para interromper a gestação, muitas vezes em condições subumanas, vão se calar. “São 300 mulheres morrendo por ano no Brasil”, estima Olímpio, que compara as leis brasileiras às de outros países. “Em outros lugares, religião é uma coisa, saúde é outra. O Brasil está 50 anos atrás de vários países para enfrentar o problema, pois, ao escondê-lo, você não o resolve. Uma mulher pode ir presa, e o companheiro dela não?”, polemiza.
ÉTICA MÉDICA Para o CRM-MG, o início da vida se dá quando há a fecundação, ou seja, com 12 semanas existe na barriga da mulher uma criança. “Somos contra a decisão do CFM. Levamos o assunto a 21 conselheiros mineiros e, por unanimidade, decidimos ser contra a descriminalização do aborto”, afirma o presidente da entidade, João Batista Gomes Soares. Para ele, aborto é uma solução extrema. “Nossa corrente considera que até 12 semanas já tenha o início da vida.” Ao permitir o ato, Soares teme que muitas clínicas se abram para fazer o procedimento país afora. “Somente em Minas Gerais, em cinco anos, cassamos seis médicos por cometerem o crime. O problema é que há a fiscalização, mas não nos passam os nomes desses profissionais. Duvido muito que as mulheres vão buscar o procedimento só com até 12 semanas. Não seria melhor fazer um votação popular no Brasil sobre o tema?”, sugere. Outra questão levantada por ele é a ética pessoal dos médicos. “O código de ética médica diz que o profissional não é obrigado a participar de atos médicos contra a sua consciência. Se há minha convicção pessoal, não vou fazer. Tenho os meus princípios. Somos treinados para salvar vidas.”
ABORTO LEGAL Essa consciência médica é colocada em xeque até quando o aborto se enquadra em uma das situações em que o procedimento é autorizado – risco de vida para a mãe, gravidez provocada por estupro e feto anencéfalo. A Maternidade Odete Valadares, em Belo Horizonte, há 10 anos é um dos hospitais referência e credenciados para fazê-lo. “Temos em média quatro casos de mulheres grávidas por estupro por mês. Há 10 anos, elas precisavam da ocorrência policial, mas a medicina dispensou o documento. Hoje, elas preenchem um formulário e passam por uma análise médica, com diagnóstico clínico. São internadas e o procedimento é feito, com medicação para expulsão do feto e curetagem. Desde que estejam no máximo entre a 12ª e a 13ª semana da gravidez ”, explica o diretor geral da maternidade, Carlos Nunes Senra. Segundo ele, mesmo nessas situações, há médicos que não fazem o procedimento, muitas vezes por questões de religião.
Ponto crítico
Você é a favor da legalização do aborto no brasil?
Não
“Em um país como o nosso, minha preocupação é o aborto se tornar um método contraceptivo banalizado. A situação é educacional. O interessante não é discriminalizar o ato, mas educar as pessoas para um sexo seguro e um planejamento familiar. A liberação não vai resolver, vai apenas deslocar o risco.”
Alamanda Kfoury Pereira
ginecologista e professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
“Dentro de tudo que vemos no Sistema Único de Saúde (SUS), o trabalho tem que ser na questão de anteceder o aborto. Podemos cair em uma armadilha, as mulheres podem passar a usá-lo como uma nova ‘pílula do dia seguinte’.”
Cristina Mendes Gigliotti Borsari
psicóloga, autora da dissertação de mestrado “Aborto Provocado: uma vivência e significado. Um estudo fundamentado na fenomenologia”, pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo)
Sim
“Embora haja pílula e muitas maneiras de evitar uma gravidez, a educação não é igual para as mulheres brasileiras. As repercussões disso para a saúde pública são imensas. A mulher tem que ter direito sobre a própria vida. Por causa dos preconceitos e religiões, não estão considerando a vida dela. A maioria dos projetos que estão no Congresso sobre o assunto são feitos por homens. Determinar o domínio feminino é uma violência.”
Roseli Goffman
psicóloga clínica e conselheira do Conselho Federal de Psicologia
“É uma incoerência justificar a proibição do aborto como uma lei a favor da vida, quando sabemos que o aborto ilegal é a quarta causa mais comum de mortalidade materna.”
Gilda Paoliello
psiquiatra e psicanalista, membro da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria
Nenhum comentário:
Postar um comentário