Novo espetáculo do Grupo Galpão, Os
gigantes da montanha traz de volta a parceria com o diretor Gabriel
Villela. Concepção visual é um dos destaques da montagem
Carolina Braga
Publicação: 17/04/2013 04:00
Com sotaque
nordestino bem carregado, enquanto acerta calmamente detalhes da máscara
de argila, o artesão e ator Shicó do Mamulengo solta a brincadeira. “Se
um espetáculo de Gabriel não tiver sombrinha é porque ele está mais
doido”, diz. Entre risadas, todos que estão dentro do ateliê montado na
sede do Grupo Galpão, no Bairro Horto, reconhecem: o diretor Gabriel
Villela tem mesmo uma queda pelos guardas-chuva e mais uma vez eles
darão toque especial ao palco da companhia mineira.
Com
estreia prevista ainda para o primeiro semestre, caminham em ritmo
avançado os ensaios de Os gigantes da montanha, o próximo espetáculo de
rua do grupo. A obra do italiano Luigi Pirandello marca o reencontro da
trupe com o diretor, depois de um longuíssimo intervalo. Responsável
pela concepção de montagens como Romeu e Julieta (1992) e A Rua da
Amargura (1994), Gabriel tem estilo de criação bastante particular. Se
já era assim lá no começo, quando pó de parede era utilizado para
envelhecer figurinos, agora o método volta aprimorado. E, claro, as
sombrinhas continuam firmes e fortes.
“Ela é repetição de um
motivo. Para mim, é símbolo de uma unidade que não se transgride na
vida: a minha relação com o circo na infância. O circo-teatro me deu uma
formação popular”, conta. Os gigantes da montanha foi escolhido a
partir de cinco textos. “Nosso trato era voltar para a rua. É a opção
mais difícil, por causa da transposição para águas populares de um rio
muito formoso e erudito chamado Pirandello”, reconhece Gabriel. Sendo
autor ainda com fortes ligações acadêmicas, um dos primeiros desafios
era revelar – ou descobrir – os elementos populares inseridos na obra do
dramaturgo. Afinal, trata-se do Grupo Galpão e de Gabriel Villela, e
erudição não é a melhor definição para a parceria de longa data.
O
processo envolveu um mergulho não só do diretor, mas também de todos os
atores no trabalho de concepção daquilo que iria compor a cena. Para
Paulo André, integrante do grupo, a experiência com o diretor é uma
viagem. “É surpresa atrás de surpresa. O Gabriel é genial. Tem os surtos
criativos dele. Parece que recebe alguma coisa, aí o bicho pega.
Transforma tudo. Incrível”, elogia.
Desde dezembro a sede do
grupo em Belo Horizonte acomoda o ateliê do diretor, de onde sai
praticamente tudo que será visto na peça. Por enquanto, é como se não
houvesse uma separação entre palco e oficina. Como o trabalho é
contínuo, vale tudo na hora de criar.
Ao falar sobre a
concepção de Os gigantes da montanha, Gabriel Villela se lembra de Tia
Olímpia, personalidade que caminhava pelas ruas de Ouro Preto e agregava
a história na própria veste. “Eram aditivos do mundo inteiro para
compor uma única grande roupa”, lembra. A partir dessa referência, pouco
a pouco a carga intelectual de Pirandello foi se dissipando.
Do
ateliê itinerante de Gabriel saem a cada dia combinações curiosas na
costura dessa grande colcha de retalhos – e referências – que será o
espetáculo. “Ateliê é multiuso. O que veio para cá foi um conjunto de
materiais para servir à fábula. Isso é dramaturgia. Não pode ser visto
como ornamento”, frisa. Tecidos importados de Myanmar, antiga Birmânia,
país fronteiriço com a Índia, bordados feitos à mão por índias de Cuzco,
no Peru, se misturam a rendas usadas para fabricação de lingerie,
máscaras elaboradas com argila e fibra de bananeira, flores de papel
crepom, tapeçaria, e por aí vai.
Liturgia Vestir um personagem,
para Villela, é quase uma liturgia. “O Galpão veste uma roupa para
celebrar um mito, não para desfilar uma moda fashion”, diferencia. “O
figurino do Gabriel é dramaturgia. Como ele trabalha muito em cima dos
arquétipos, as roupas são carregadas de significados. Dizem muita coisa
do personagem, ao mesmo tempo em que esconde, revela, provoca
mistérios”, analisa Paulo André.
A referência circense não
aparece somente nas sombrinhas ou nos pompons muito usados nas roupas de
palhaço. No caso de Os gigantes da montanha, também estará explícita no
palco a ser carregado pelo Brasil inteiro. A cenografia, composta por
12 robustas mesas, bem ao estilo mineiro, além de significar a relação
que o brasileiro e o italiano têm com o espaço nobre da cozinha, também
reproduz um picadeiro onde a fábula se passará. “Traz uma arquitetura de
circo-teatro cujo centro é o palquinho, com picadeiro e dois camarins
laterais”, explica.
Nos elementos de cena, bonecos elaborados
pela Oficina de Agosto de Bichinho, distrito de Prados, e até heranças
reais, como é o caso de uma cama usada pelo próprio diretor ainda
criança, na fazenda da família, em Carmo do Rio Claro. “É preciso
lembrar que isso aqui não é cenário e figurino somente. É concepção, e
ela envolve todos os gêneros artísticos. Por mais que você tenha que
traduzir em nomenclatura – que ora se chama cenografia, ora figurino –,
na verdade é só uma parte estrutural das artes cênicas, que prevê como
resultado o homem, a palavra e o ator”, sintetiza Gabriel Villela.
Liberdade para criar
Todos
os dias o serviço no ateliê começa bem antes da chegada dos atores.
Trabalham diretamente nele Shicó do Mamulengo, pinçado por Gabriel
Villela em Açu, no interior do Rio Grande do Norte, que cuida dos
adereços envolvendo argila e couro; e o ator e assistente de figurino
José Rosa, baiano de Caculé, que se dedica aos bordados e acabamentos
com Giovanna Villela, irmã e parceira do diretor em todas montagens que
ele faz.
A regra naquele espaço é não desperdiçar
absolutamente nada. “A gente transforma o lixo em luxo”, brinca Shicó.
“Existe um pensamento, ideias que são dialogadas com os atores e que o
tempo inteiro são decodificadas pelo ateliê, a fim de criar algo que
possa se transformar naquilo que a gente chama de segunda pele do ator”,
detalha Gabriel. Pelas contas de Rosa, até agora já foram elaborados
cerca de 30 peças de figurino e não há nada simples.
Como se
trata de um espaço de criação, as ideias são livres para ganhar vida.
“Ele é exigente, no bom sentido, quer as coisas benfeitas. E dá espaço
para gente criar um pouco, fazer propostas e mostrar para ele”, conta
José Rosa sobre a relação com Gabriel Villela. Ainda que não estejam em
cena, Shicó e Rosa recebem o texto, devem estudá-lo e apresentar
propostas de acordo com a estética sugerida pelo diretor. Para a criação
das máscaras, por exemplo, Shicó partiu das referências da commedia
dell'arte e teve liberdade para ousar. “É o meu burlesco. Vou na loucura
e, então, mostro para o Gabriel”, conta.
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