DEPOIMENTO
Filho da atriz em peça, Marco Antônio Pâmio relembra o convívio com a artista que morreu anteontem, aos 89
ELA COMPREENDIA O OFÍCIO DO ATOR COM LUCIDEZ, TENACIDADE E OBSTINAÇÃO CADA VEZ MAIS RARAS
MARCO ANTÔNIO PÂMIOESPECIAL PARA A FOLHA"Foi para o céu a nossa Cleyde. Ela foi grande! Tristeza e uma saudade que não vai passar." Assim diz o e-mail que Naum Alves de Souza, diretor de "Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro", acaba de me enviar.Foi na montagem de 2002 dirigida por ele que a conheci e tive a honra de viver seu filho em cena. A caminho do Rio de Janeiro, para o primeiro dia de ensaios, o estômago me revirava, pois em pouco tempo estaria diante do "mito Cleyde Yáconis", da "irmã de Cacilda", da "grande dama do teatro nacional".
E deparei com uma das pessoas mais simples, íntegras e autênticas que já conheci na vida. Cleyde era de uma retidão e de uma coerência admiráveis.
Avessa ao glamour costumeiramente associado à profissão e à cultura de celebridade, Cleyde era obcecada única e exclusivamente por seu ofício. Orgulhosa de seu repertório, construído ao longo de décadas de trabalhos memoráveis, fazia questão de mantê-lo irretocável e ilibado.
A cada noite de apresentação, seu nervosismo antes de entrar em cena era comovente, tamanha a responsabilidade e a importância que dava ao ato de estar no palco.
A boca secava, os lábios tremiam e, muitas vezes, após uma expiração profunda e agoniada, desabafava: "Por que escolhi fazer isso da minha vida, meu Deus?".
Do alto de seus quase 80 anos na época, tinha a adrenalina de uma estreante. Compreendia a função do ofício do ator com lucidez, tenacidade, obstinação e verticalidade cada vez mais raras.
Estudava dia e noite seu texto, preocupava-se com cada detalhe da personagem, não deixava um instante em cena sem ser preenchido com verdade e emoção genuínas, nem uma única sílaba sem ser cristalinamente compreendida pelo público.
Sua Mary Tyrone era tão genial que muitas vezes eu me pegava em cena assistindo a ela, admirando-a.
E, terminado o espetáculo, aquele "monstro sagrado" do nosso teatro saía dirigindo seu carro rodovia Anhanguera adentro, rumo a sua chácara em Jordanésia. Simples assim. Sem pompa, sem glamour, sem vaidade. Lá, finda a extenuante jornada física e emocional com o suor de seu rosto e a exposição de sua alma, reencontrava a natureza.
Naum tem razão: a saudade não vai passar. Cleyde foi mestra, foi norte, foi exemplo para quem pisa no palco.
Foi, e há de continuar sendo, referência indiscutível numa profissão cada vez mais banalizada pela sede de sucesso instantâneo e do consumo imediato.
Que ela esteja agora sendo recebida por todos os deuses, já ao lado de tantos que lhe foram tão queridos. E com a certeza plena de que nunca a esqueceremos.
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