Um peso nos ombros
Livro sobre uma sobrevivente de Auschwitz analisa a memória e o esquecimento
Quando a casa dela pegou fogo, na década de 1970, o desespero foi grande na família. O marido chorava, tirando a água e a espuma do extintor, tentando salvar os últimos bens. Ela preferiu encontrar as amigas para jogar buraco.
Quando o irmão dela morreu, em Nova York, ela tampouco se importou muito. Ir ao enterro? Para quê? Ele já morreu mesmo...
Depressão, melancolia, são coisas que ela desconhece. "Para estar triste é preciso ter algum motivo." Raiva, menos ainda. Aos 85 anos, aparentando muito menos, Lili Jaffe não tem raiva de ninguém.
Não tem raiva nem mesmo dos nazistas, que a mantiveram por cerca de um ano no campo de extermínio de Auschwitz. "Não gosto de ter raiva", diz ela.
Lili Jaffe também diz não ter sentido medo quando estava nas mãos dos nazistas. O famigerado dr. Mengele foi examiná-la certa vez. Ela tinha acabado de passar por um castigo que ferira seriamente os seus joelhos.
"Mengele era muito detalhista. Eu estava nua, mas fiquei carregando minhas roupas sobre os joelhos, para que ele não visse. Eu tinha uma aparência boa e, por sorte, ele não viu meus joelhos e deixou passar".
Qualquer incapacidade para o trabalho, naturalmente, significaria a câmara de gás. Lili Jaffe sobreviveu até 1945, quando foi salva pela Cruz Vermelha e levada à Suécia. Tinha 19 anos.
Sua filha, Noemi Jaffe, publicou agora pela editora 34 "O Que os Cegos Estão Sonhando?". O livro reúne o diário que sua mãe escreveu quando estava na Suécia e vários fragmentos e comentários da própria Noemi, interpretando a experiência das vítimas do nazismo e dos seus descendentes. Dando um passo a mais na genealogia, Leda Cartum, filha de Noemi e neta de Lili, escreve o posfácio.
É muito difícil, como se sabe, dar forma literária a uma coisa tão traumática como o extermínio dos judeus nos campos nazistas. Mais difícil ainda, apesar de tudo o que já se escreveu sobre o tema, é entender como aquilo pôde acontecer.
Com muita arte, Noemi Jaffe abordou o assunto de forma indireta --procurando entender não o nazismo, mas o modo de ser de sua própria mãe. Para tornar tudo ainda mais indireto e menos sentimental, adotou a terceira pessoa para falar de si mesma e de suas relações com Lili.
Como vítima do nazismo, Lili recebe uma pequena indenização mensal do governo alemão. "Sua filha", escreve Noemi, "sempre se perguntou se era legítima a aceitação desse dinheiro. Não funcionaria como uma tentativa, por parte dos alemães, de eximir-se de uma culpa impagável? Por outro lado, não se trataria de uma forma minimamente aceitável de pagar pelo que se fez?"
A mãe, entretanto, não se questiona. "Filhos de sobreviventes", analisa Noemi, "são muito mais afeitos a conflitos morais que os próprios sobreviventes." Quem passou pela tragédia, diz a autora citando José Miguel Wisnik, não faz dramas.
De toda a tragédia, Lili Jaffe concentrou suas lembranças num só acontecimento básico. Certo dia, por pensarem que ela tinha roubado um pedaço de manteiga, os nazistas mandaram que ela ficasse ajoelhada por muitas horas, carregando uma enorme pedra na cabeça.
Foi o que deixou seus joelhos feridos no momento do exame com Mengele. Mas a pedra, como na história de Chapeuzinho Vermelho, parece ter sido costurada na barriga do lobo, junto com a raiva, o medo, a incompreensão, as outras memórias do campo. A menina de 19 anos se salvou.
"Qual a moral da pedra?", pergunta Noemi ao visitar, em pleno inverno, o lugar em que existiu Auschwitz. "Quem se compadece compreende a dor, e a dor não pode ser compreendida." Não se pode sentir a mínima tentação de transformar Lili em heroína, continua Noemi; "ali, no campo, o sofrimento era comum e seu castigo foi até moderado".
Esquecer, diz a autora em outro trecho, é "cair para fora: ex cadere'". Equivale, assim, a escapar, a sair, a fugir. Mas é também um ato voluntário. "O que se esquece não é um volume oco, em oposição ao volume maciço das lembranças. O que se esquece pode ser uma massa totalmente preenchida, com imagens e palavras que não falam."
Mudas, como pedras. Mas é possível escutá-las, ou ao menos tocá-las com os dedos, sentir seu peso, descobri-las sob a poeira, enxergá-las através da cegueira do passado. "O Que os Cegos Estão Sonhando?" faz isso, sem violência, como quem tira um peso dos próprios ombros.
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