terça-feira, 28 de maio de 2013

Educação domiciliar tem 2 milhões de adeptos nos Estados Unidos

folha de são paulo

Eduque você mesmo
Cerca de 2 milhões de crianças americanas estão fora da escola: elas têm aulas em casa, com os próprios pais, em geral profissionais urbanos muito bem educados, que criticam o ensino padronizado
RAUL JUSTE LORESDE WASHINGTONNo bairro de Fort Greene, no Brooklyn, em Nova York, 15 crianças de seis famílias aprendem matemática, geografia e educação física enquanto estudam a Copa do Mundo de 2014.
O que elas têm de incomum é que nenhuma está matriculada em uma escola. São educadas pelos pais em casa e acabaram criando uma comunidade, em que pais ensinam uma especialidade própria aos filhos dos outros.
Hoje, nos EUA, 2 milhões de crianças não frequentam escola. O último censo, de 2007, falava em 1,5 milhão.
"No passado, escolarização doméstica era coisa para famílias religiosas, que tinham 12 filhos e não queriam escola laica, ou de ex-hippies. Era algo rural ou suburbano", diz Brian Ray, presidente do National Home Education Research Institute, um centro de estudos em Washington. "Só na última década tornou-se algo urbano", diz. Ele estima que 300 mil crianças estejam na categoria de filhas de pais bem educados e urbanos, que acreditam poder fazer melhor que os professores em salas de aula maiores e mais heterogêneas.
Com o fenômeno do "faça você mesmo" em alta, que estimula hortas no quintal, cervejas artesanais e uma vida mais orgânica, o eduque você mesmo virou uma opção à educação padronizada.
Professor da Universidade Georgetown, em Washington, Paul Elie, 47, decidiu educar os três filhos em casa depois que uma mudança burocrática o impediu de matriculá-los em uma escola pública no bairro vizinho. "As particulares podem cobrar até US$ 40 mil pela anuidade de uma criança de sete anos, o mesmo valor de uma anuidade na faculdade, e, na pública onde meus filhos estavam, tinha uma professora substituta de 23 anos", reclamou.
"Com a flexibilidade nos nos nossos horários de trabalho, decidimos encarar o desafio", conta o professor à Folha. Ele passa uma hora e meia diária ensinando os filhos, e sua mulher, Lenora, duas horas e meia. Os dois têm dois gêmeos de 10 anos e uma menina de 8 anos.
A mãe ensina história, geografia e redação, enquanto o pai dá aulas de matemática e inglês: "Achei na rede o material didático de matemática de Cingapura, muito melhor que o americano, e comprei tudo", diz o professor.
PROVAS E TUTORES
No grupo de famílias que abraçaram a educação caseira junto com Elie, um pai que é cientista ensina ciências às 15 crianças e as leva regularmente ao Museu de História Natural de Nova York.
Uma mãe que fala francês ensina o idioma à criançada e não raro eles saem em passeios para aprender a fotografar e a desenhar a cidade.
Graças às décadas de pressão de grupos religiosos, a educação em casa é legal nos EUA, mas a regulamentação varia muito entre Estados e até de cidade para cidade.
Em geral, os pais devem registrar seus filhos no departamento de "homeschooling" da Secretaria de Educação local, onde receberão uma lista com o currículo mínimo exigido para a idade e sugestões de leituras e materiais.
As crianças devem se submeter a provas até três vezes por ano, que checam se estão autorizadas a "passar de ano" pelo sistema tradicional.
Alguns pais ensinam todas as disciplinas. Outros focam em suas especialidades e contratam tutores ou usam cursos on-line para matérias mais complicadas.
Mas, além da dúvida sobre o talento dos pais para ensinar as crianças e da paciência para aquelas com maior dificuldade de aprendizagem, outra questão normalmente levantada é a falta de socialização que é parte fundamental de uma aula --com suas colaborações, equipes, competições e debates.
Por isso, boa parte da nova geração de "homeschoolers" urbanos tem se reunido em associações ou grupos informais para aproveitar o conhecimento dos veteranos, criar aulas com novos especialistas e promover atividades lúdicas. Uma associação de pré-escola caseira em Washington reúne 80 famílias.
Quando termina a "educação em casa"? Pode chegar até o fim do equivalente ao ensino médio (2º grau) americano. O professor universitário Paul Elie diz que quer seus filhos na universidade e que o "homeschooling" é uma amostra de uma boa faculdade. "Temos apresentações de especialistas, ensino customizado, conteúdos que variam dia a dia e ano a ano. Sem tédio e sem notas, com a finalidade de aprender de fato, é esse ambiente universitário' que meus filhos já identificam como educação."

    'No Brasil a jornada é mais solitária', diz mãe adepta da educação em casa

    JULIANA VINES
    DE SÃO PAULO

    Quando se mudaram dos EUA para o Brasil, há dois anos, Nadine Toppozada, 39, e Jean Trapenard, 48, precisaram mudar também o jeito de educar os dois filhos.
    Karine e Alan, hoje com dez e 12 anos, nunca foram à escola e são "unschoolers", palavra que define adeptos de uma educação ainda mais livre que o "homeschooling". Aqui, ninguém segue manuais ou apostilas.

    No Brasil, as crianças continuam sem ir à escola, mas a família teve que se adaptar ao fato de ser exceção. "A jornada ficou muito mais solitária", diz Nadine, que tem formação em ciências políticas e é de origem egípcia.
    VIctor Moriyama/Folhapress
    Karine, com os pais, Nadine e Jean, e o irmão, Alan, na casa da família, em Vinhedo, SP
    Karine, com os pais, Nadine e Jean, e o irmão, Alan, na casa da família, em Vinhedo, SP
    "Morávamos em Los Angeles, fazíamos parte de uma rede de 700 famílias que praticavam educação em casa. Toda semana havia encontros em parques da cidade. As crianças ficavam juntas, compartilhavam experiências. Aqui isso não existe", conta.
    A solução para seguir com a educação domiciliar foi matricular as crianças em muitas aulas. "Faço tênis, violão e arco e flecha", diz Alan, que já chegou a passar uma semana em uma escola, só para conhecer. "Não gostei. Tem muito 'faz isso, faz aquilo'. É tudo muito coordenado, tem hora para fazer as coisas."
    Foi sua mãe quem programou a visita. Karine foi conhecer um colégio por três dias. Também não gostou.
    "A opção está aberta para eles se tiverem curiosidade. É uma escolha mais deles do que minha. Entendemos que a opinião da criança deve ser respeitada e tem o mesmo valor que a opinião do adulto."
    Quando começou a educação em casa, a família tentou comprar métodos com apostilas. Durou seis meses. "Não dava certo. Naturalmente saímos do currículo", diz a mãe.
    Nadine e o marido, que é engenheiro e brasileiro, quase não ocupam o papel de professores. As crianças aprendem lendo, pesquisando na internet e a partir de experiências práticas. Em um restaurante, por exemplo, uma delas pergunta como é calculada a gorjeta do garçom. Então os pais explicam.
    A maioria dos conhecidos da família nunca ouviu falar em ensino domiciliar. "Perguntam: quando eles vão para a escola? Como se dissessem 'Chega, vocês moram no Brasil'." Eles dizem não se incomodar. "Para nossa família vale a pena, mas sei que não é para todo mundo."
    No Brasil, educação domiciliar está à margem da lei
    JULIANA VINESDE SÃO PAULOOitocentas famílias fazem educação em casa no Brasil, segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar. Há dois anos, eram 400 registros. "Não sabemos se houve crescimento ou se mais gente veio a público", diz Alexandre Magno Moreira, diretor jurídico da associação.
    A lei brasileira não trata da educação domiciliar, o que dá margem a interpretações. A Constituição diz que educação é dever do Estado e da família; para a Lei de Diretrizes e Bases e o Estatuto da Criança, os pais devem matricular os filhos na escola.
    "O mesmo artigo da Carta é usado para defender o ensino em casa e para dizer que é inconstitucional", diz Luciane Barbosa, doutoranda em educação na USP.
    No entendimento do Superior Tribunal de Justiça, educação domiciliar é inconstitucional. Seis famílias já foram processadas pela prática, e, uma delas, condenada a pagar multa. Mas já há parecer favorável a uma família.
    "Temos base legal para defender a prática", diz Moreira, que é professor de direito.
    Hoje em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 3.179/2012, do deputado federal Lincoln Portela (PR), faz a Lei de Diretrizes e Bases admitir a educação domiciliar com acompanhamento do Estado. "Há homeschool' em 60 países. É um direito dos pais", diz Portela.
    Para Maria Celi Vasconcelos, pós-doutora em educação, é muito cedo. "A universalidade da educação é recente. A desescolarização ainda é vista sob suspeita", diz ela, que é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. "As últimas políticas públicas vão no sentido de aumentar a permanência de crianças na escola", lembra.
    O sociólogo André de Holanda pesquisou 62 famílias brasileiras que educam em casa. A maioria (90%) diz que sua motivação é dar uma educação melhor que a escola; 75% acham que a socialização na escola é prejudicial e 60% têm motivos religiosos.
    Algumas dessas razões levaram Samuel Silva, 42, executivo, a decidir não matricular seus cinco filhos no colégio. "Eles podem render mais se forem tutoreados por nós."
    A família segue um currículo americano com os dois filhos mais velhos, de nove e sete anos. O material vem dos EUA e é complementado com textos em português.
    "Meus filhos me perguntam se vão para a escola um dia. Um dia podemos achar que eles estão prontos", diz o pai. E se esse dia não chegar e os filhos precisarem de certificados para entrar na faculdade? "Podem fazer supletivo. Há alternativas."
    Silva não teme problemas legais e rebate as críticas da falta de socialização. "É escola em casa, não é monastério. Meus filhos têm amigos, fazem futebol, coral na igreja."
    Para Barbosa, a socialização na escola também é questionável. "A escola seleciona o tipo de socialização. Há colégios de ricos, de pobres. Há contato com o diferente', mas um diferente igual", diz.
    REFERÊNCIA INFANTIL
    A pesquisadora enxerga na mobilização desses pais a necessidade de repensar a instituição de ensino. "Tudo mudou na sociedade, menos a escola. Eles têm razão nas críticas", afirma. "Mas, apesar dos problemas, a escola é uma referência para a infância no Brasil e esses questionamentos poderiam ser usados para mudar a instituição. Se esses pais superengajados estivessem dentro da escola, ela seria diferente."
    Vasconcelos pesquisou famílias brasileiras e portuguesas para seu pós-doutorado e diz não ser possível classificar a educação domiciliar. "Há famílias com bons resultados, mas não significa que o homeschool' é um sistema de qualidade." Isso porque não há um só método, há milhares. Cada família tem um.
      'Foi meu filho que pediu para sair da escola'
      DE SÃO PAULOEmpreendedor social, nômade, vegetariano, superdotado, minichef de cozinha e palestrante. É assim que Biel Baum, 11, se define em uma rede social. Filho de Sabrina Campos, 32, "empreendedora social em série", ele é "unschooler": não vai à escola desde os oito anos, é educado de forma livre pela mãe.
      Não faltaram tentativas. "Ele passou por muitas escolas. De colégio de elite em São Paulo à escola pública no interior. Eram os mesmos problemas", diz Sabrina. "Sofria bullying. Não se adaptava."
      Até que Biel disse à mãe que não queria mais ir à escola. "Não estranhei, mas pedi tempo para me preparar."
      Na época, eles moravam em Barcelona. Por um ano, Sabrina fez um "desmame": matriculou o filho em uma escola americana à distância. Hoje, ele não é ligado a nenhuma instituição. Sabrina segue o próprio método para ensinar os filhos: além de Biel, Raquel, 4, e David, 2.
      "Biel trabalha com projetos. Se não sei algo, vamos buscar juntos. Mobilizei tutores no mundo todo. Ele faz de cursos on-line em universidades a aulas de gastronomia. Sua produção é rica, já tem convite de universidades."
      Os resultados fizeram com que o pai de Biel aceitasse melhor o fato de o filho não ir à escola. "Ele se preocupou no começo, mas agora vê que tem coisa boa acontecendo."
      Sabrina hoje é casada com o catalão Rafael Megías. Há um ano a família faz intercâmbio de casas. Nesse tempo, moraram em seis cidades no Brasil. "Vamos dar uma parada. A Raquelzinha pediu para ter o próprio quarto", conta a mãe, já adiantando que o intervalo é só até o fim do ano. "Em 2014 vamos para Granada [na Espanha]."

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