Argentina tem entraves como inflação e câmbio
PARA EX-MINISTRO DA ECONOMIA E ATUAL CRÍTICO DO GOVERNO DE CRISTINA KIRCHNER, PAÍS SE APROXIMOU DA LINHA CHAVISTA
Mesmo entre os argentinos que reclamam da crescente inflação e da instabilidade monetária, há uma espécie de consenso: nada pode ser pior do que aquele momento de desgoverno, quando o peso perdeu valor, as pessoas ficaram sem seus investimentos e o caos social tomou conta das ruas.
O reerguimento da economia argentina, após a declaração do "default", se deu paulatinamente a partir de 2003, com o início da gestão Néstor, ancorado pelo bom momento das commodities e pelas decisões tomadas, principalmente, por um homem: o então ministro da Economia, Roberto Lavagna.
Até 2005, Lavagna foi um fiel aliado do kirchnerismo, mas começou a ter diferenças com Néstor quando este passou a associar-se demais à Venezuela de Chávez e a adotar uma postura mais populista.
Lavagna foi, aos poucos, migrando para o lado oposto. Hoje, é um ferrenho crítico das políticas econômicas da sucessora de Néstor, sua mulher, Cristina, e rotula-se como apoiador de uma provável frente política de oposição em 2015.
Nos últimos meses, Lavagna tem participado de reuniões com o prefeito conservador de Buenos Aires, Mauricio Macri, e dado entrevistas apontando o que considera erros da atual gestão.
O ex-ministro da Economia recusa-se a considerar a década como uma coisa uniforme. Diz que Cristina está atuando de forma irresponsável com relação à inflação, que já chega aos 30% ao ano, segundo avaliação de consultoras privadas, e à fuga do investimento externo.
Abaixo, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha, em seu escritório, em Buenos Aires.
Roberto Lavagna - De maneira nenhuma. Não é possível considerar esse período como algo homogêneo. Foram dois momentos. O primeiro, a partir de 2002, de Duhalde/Lavagna/Kirchner, com políticas responsáveis e equilibradas, com um objetivo claro, o de dar estabilidade ao país aproveitando as boas taxas de crescimento do PIB. Já de 2005 em diante, trata-se de um período distinto, que eu chamaria de Kirchner/Kirchner, em que o casal se fechou no poder.
Hoje o que temos é um governo de forte tendência ideológica, demasiada intervenção do Estado na economia, grave crise institucional e uma postura completamente diferente com relação à política internacional.
O que marcou essa mudança?
O "turning point" desse governo, para mim, foi a reunião de presidentes em Mar del Plata, em 2005, quando se sentiu o primeiro indício de que se começava a tomar um rumo distinto. Foi uma reunião tensa, conflitante, em que Chávez e Néstor chamaram o protagonismo para si, acuando Bush, colocando os outros chefes de Estado em uma situação difícil. Vicente Fox (México) foi maltratado, Lula e Lagos (Chile) saíram pela tangente.
Houve, então, um "contra-encontro", o ato com Maradona e Chávez, em que o canto que predominava era: "Alca, alca, alca al carajo". Néstor havia ganho as eleições de metade de mandato. Se ao assumir ele tinha 22%, agora se confirmava com 38%. Esse número foi interpretado por ele como cheque em branco para atuar como quisesse.
O governo foi adotando matizes mais ideológicos, é o que predomina nos dias de hoje. Mas eu não considero que Néstor tenha sido um bloco, e Cristina, outro. Os problemas do modelo de hoje já estavam na época de Néstor, ele foi o responsável por mudar a direção do governo.
No caso desses dez anos, a variação do PIB explica os altos e baixos de popularidade do governo? Néstor tinha aprovação alta quando essa taxa era de 8%, 9%, o que garantiu a eleição de Cristina. Hoje temos outra situação?
Claramente. Sim, um número explica o outro. Em nossa época, o PIB variava entre 8,8% e 9,2%, tínhamos bastante margem política para governar. Hoje Cristina tem menos de 4% de crescimento do PIB e sua popularidade recebe o impacto, está agora na faixa dos 35%.
O governo insiste em que a inflação na Argentina hoje é de 10,2%, enquanto medições privadas jogam esse número para 25%, até 30%. Que impacto a inflação tem hoje?
O impacto é imenso, além de desgastar e penalizar os mais pobres, que ganham em peso e com isso têm o salário valendo cada vez menos, há uma dissuasão dos investimentos, internos e externos. Todos consideram melhor esperar do que investir agora, a inflação faz elevarem-se muito os custos e não garante que os negócios se cubram. A instabilidade monetária, com o dólar a quase 10 pesos, causa ainda mais insegurança.
O governo passa a ter de se valer de reservas, de fundos da Anses [o INSS argentino], até emitir mais moeda, gerando mais inflação. A ideia de que a inflação não é um problema, e que o importante é o crescimento, é uma falácia. Hoje, a inflação já tem sete anos de crescimento na Argentina, já se tornou um fato crônico.
Qual o impacto da fuga de capitais, que o governo teme?
O último ano de ingresso líquido de capitais foi 2005, depois só saiu. No ano passado, isso se conteve um pouco devido ao cerco ao dólar. Agora, nos primeiros quatro meses do ano, já saiu o dobro do que no ano passado, porque as pessoas e as empresas vão encontrando caminhos, apesar das proibições. O pior problema não é sair o capital estrangeiro e sim o local, e esse é o primeiro que sai, porque conhece a história.
Algumas empresas brasileiras vêm deixando a Argentina. Isso é uma tendência?
É preciso lembrar, antes de mais nada, que esses casos de empresas que estão saindo são casos que têm a ver com problemas internos dessas empresas. Vale e Petrobras estão repensando sua estrutura interna e de investimentos, é normal que decidam parar de investir onde está dando algum tipo de problema. A Argentina, nesse momento, apresenta entraves, como a inflação e a política cambial. É natural que essas empresas saiam.
Como vê a relação entre Brasil e Argentina hoje?
O que acho mais grave é que não há o mais mínimo entendimento entre as duas. Dilma é uma gestora, Cristina é alguém que aposta no discurso ideológico. Não podem funcionar juntas.
Numa relação assim, quando não há problemas, essas diferenças se dissimulam, quando há, isso vem à tona muito rápido. É o que está acontecendo.
Todos sabem que essa última reunião entre as duas foi má. E antes disso já havia havido outras más reuniões. Nota-se que não existe o mínimo progresso na relação.
Isso afetará o Mercosul?
O Mercosul hoje tem problemas profundos. O Brasil começou a levar adiante uma estratégia mais global, que também começa a mostrar falhas. Já a Argentina se aproximou da linha chavista. E há outros países que estão com problemas com a Argentina, como o Uruguai. A entrada da Venezuela no bloco não melhora a situação.
Porém, quando o Mercosul nasceu, não havia nada, e hoje há alguma coisa. Por isso creio que deva ser resgatado. Brasil e Argentina deveriam fazer algo.
Como o sr. vê a economia argentina nos próximos meses, que antecedem a eleição legislativa de outubro?
Bom, há um congelamento em vigor, mas todos sabemos que sua eficácia é nula, mudam-se as embalagens, altera-se o conteúdo, retiram produtos de circulação, há várias formas de burlá-lo. E é o que está acontecendo.
Mesmo assim, não vejo uma grande catástrofe acontecendo, a inflação seguirá nesses níveis, o dólar também, com o governo exercendo algum controle.
O que considera uma novidade política na Argentina hoje?
O fato mais importante é que o partido do governo está dividido. O peronismo já havia se dividido no passado, mas nunca ao mesmo tempo em que estivesse no governo. Já houve divisão e renovação, mas sempre em períodos de adversidade, hoje há tudo isso com o governo sendo peronista. O racha dos sindicatos, das divisões políticas que integram a base do governo, é algo novo. O fator de confrontação com o kirchnerismo sairá daí, e não da oposição real.
Será candidato em 2015 ou apoiará Mauricio Macri?
Eu estou entre o críticos desse governo, isso não é novo. Não apoiaria apenas Macri, mas se houver uma frente eleitoral, com outras vozes, sim, eu faria parte. Candidato eu mesmo, não sei, pode ser, mas a coisa legislativa me atrai menos. Tenho um caráter mais executivo.
Recentemente, o governo anunciou uma anistia para quem tem dólares no exterior e quiser trazê-los para o país. É uma boa medida?
Fui ministro da Economia e sei que a pressão para que esse tipo de lei seja aprovado é muito grande. Considero um erro. Trata-se de golpe em quem paga impostos em dia e perdão aos capitais ilegais.
Há uma desculpa de que isso ajudaria o mercado da construção. Mas temos de olhar os exemplos. No México, cidades inteiras foram construídas com dinheiro do narcotráfico, que foi lavado com esse tipo de medida. O resultado é um país cindido e com muitos problemas.
RAIO-X - ROBERTO LAVAGNA
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PARTIDO
Justicialista (peronista)
CARREIRA
Formado em economia pela Universidade de Buenos Aires, foi ministro da Economia dos governos Eduardo Duhalde (2002-03) e Néstor Kirchner (2003-05), e candidato à Presidência em 2007
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