Estado de Minas - 01/06/2013
Em
A infância de Jesus o sul-africano J. M. Coetzee mergulha na alma de
pessoas que se sentem inadaptadas ao mundo e buscam novo sentido para a
existência
André di Bernardi Batista Mendes
No livro A infância de Jesus, J. M. Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel de 2003, imagina um país de estrangeiros que, depois de atravessar o oceano, pagam com o esquecimento da própria trajetória a oportunidade de começar uma vida nova. A condição de estrangeiro também impõe uma língua nova, no caso um espanhol adquirido precariamente e que ninguém domina por completo. O leitor é guiado pelo olhar de Simón, recém-chegado que se atribui o papel de guardião de um menino de 5 anos e vai trabalhar como estivador, carregando sacos de grãos de trigo. A subsistência – o simples sustento pelo pão de cada dia – parece ser a única finalidade à qual se dirige a rotina do lugar, onde todos parecem se conformar.
Inadaptado e insatisfeito, ainda que ansioso por compreender e ser aceito, Simón tenta fazer valer os direitos de alguém cujo corpo continua impregnado de memórias. Simón, assim, trava intensos e interessantes debates filosóficos com os camaradas, com os amigos da estiva, e faz o possível para explicar às mulheres um dos fatos mais básicos (e misteriosos) da vida: o desejo. Cuidando da criança que um acidente lhe confiou e se lançando numa peculiar missão em nome dela, esse homem estabelece vínculos através dos quais a vida em família e a afetividade são expressas em sua face mais estranha.
Não sei que dispositivos existem dentro de nós, mas, por meio da literatura, Coetzee, de um modo peculiar, solto, destrava alguns destes apetrechos não menos estranhos. O escritor sul-africano fala, sobretudo, sobre a infância, sobre pensamentos, sobre inquietações. E isso reacende uma alegria. Dizer da infância de um qualquer David ou Jesus (e este nome, e esta palavra carrega uma espécie de combustível) incendeia tudo de vez. Existem, apesar de tudo, contrapontos, contrapelos de luzes e sombras, de pouco e muito, de mel e mal, de música e silêncio, até, quem sabe, começar um processo de descobertas reais. As coisas, as situações evoluem até embaçar, até surgirem neblinas. Quando vamos ver, nem a literatura para resgatar aquele tanto que se perdeu pelos descaminhos, numa embolada feito de tempo e (des)razão. Coetzee resgata um verde esperançoso. Este tipo de atitude maliciosa, este tipo de literatura pende para o positivo, apesar de tudo.
As coisas simples podem lotar de pequenas emoções o dia a dia das pessoas. Existe uma força estranha, cantada em verso e prosa, que desgoverna o ruim, que alcança as sombras para inaugurar ali o desejo de um claro sol. Esta mesma força alcança as sobras, os restos, as pequenas coisas que nada significam. Coetzee despeja essa potência feita de ternura e sonho em função do exílio de seus personagens, em função do esquecimento, que nada mais é dissolução, anulação e distrato. Cortar, extinguir, desfazer os laços criados pelo contato humano, pelas trocas, forja apenas invisibilidade e descaminhos, e mais nada.
Deve ser estranho não ter um nome, não ter um lugar, deve ser estranho pertencer ao incerto. Simón passa por estilhaços e fagulhas: “Ele não se sente velho, assim como não se sente moço. Não se sente de nenhuma idade específica. Ele se sente sem idade, se isso é possível”. Já o menino de Coetzee gosta de parlendas, de desafios: ele, incansável de perguntas, questiona: “Por que a gente está aqui?”. Não há resposta. “Não sei o que dizer. Estamos aqui pela mesma razão que todo mundo está. Nos deram uma chance de viver e nós aceitamos essa chance. É uma grande coisa, viver. É a coisa mais importante de todas.”
Absurdos do coração Num lugar onde não existem lembranças, num mundo que promove perdas, Coetzee cava pelo viés dos absurdos que moram no coração. Nunca será fácil espantar as ideias tristes como se fossem pássaros indesejáveis. A questão dos desejos é central. “Meus desejos? posso ser franco?” “Pode.” “Meus desejos me levam a mais que bolacha e pasta de feijão. Me levam, por exemplo, a carne com purê de batata e molho.
O coração, a alma é algo não anulável. Quanto mais insignificante, mais rica, mais indestrutível. A palavra infância vai sempre gerar desconforto. Elas, as crianças, desprendem-se de acordos e conchavos, mas elas articulam, de um jeito peculiar – na forma de olhar, na forma até de não dizer – outras formas de entendimento, obedecendo a uma índole benevolente, propensa a luzes e cirandas. Coetzee denuncia uma terra cada vez mais estrangeira para os homens "estranhamente satisfeitos". Coetzee denuncia a ferida, denuncia, por meio de metáforas, o desaparecimento do afeto, do amor, do desejo que une e recoloca.
A vida, com seus jogos, com suas armadilhas, nunca é literal, como querem aqueles que organizam e reorganizam uma engrenagem furiosa, promissora em termos de alienação e certezas feitas de apenas pão e plástico. Coetzee denuncia o não espontâneo. É quase um descompasso, porque as crianças, quando brincam, apenas sugerem, com cara de céu. Isso porque os danados nada têm de anjos. E assim é o Jesus, o David de Coetzee. As crianças não sabem que são apenas lúcidas.
Coetzee, com uma história, com um périplo cheio de tristeza e assombro, celebra o dia, a alegria dos encontros, da convivência, da ajuda entre um e outro. É magistral a construção dos diálogos de A infância de Jesus, principalmente quando entra em cena a perspicácia incontestável, a perspicácia ingênua da criança, que não baixa a guarda, que encara, nos olhos, os desmandos das coisas que acontecem, as vicissitudes do dia e da noite. No livro, todos têm voz. O bom, o duro é que a história de A infância de Jesus, sempre em construção, não acaba, mas continua em nós, como heras.
Coetzee viaja num dizer de escolhas certas, ele adota uma postura digna, ereta, diante dos vultos que tanto atropelam e atravancam. O escritor, pelas palavras, destranca e destrava. Enganou-se aquele que disse que os romances não carregam doses e mais doses de poesia. Essa atitude nasce de uma alma acordada, nasce de um incômodo que surge para, delicadamente, mais incomodar. Ler desanuvia, embriaga e mata um outro tipo de sede. Melhor que isso, só a música. Coetzee chama a atenção para o raro que mora, latente, nas palavras boas: respeito, tolerância, paciência. Pois sim, tudo é óbvio, até para uma criança de olhos tristes.
Trecho
“As coisas não têm seu peso devido ali: é isso que, no fundo, ele gostaria de dizer a Elena. A música que ouvimos não tem peso. Nosso ato sexual não tem peso. A comida que comemos, nossa dieta enfadonha de pão, não tem substância – falta a substancialidade da carne animal, com toda a gravidade do sangue derramado e do sacrifício por trás. Nossas próprias palavras não têm peso, essas palavras do espanhol que não brotam do nosso coração.”
A INFÂNCIA DE JESUS
• De J.M. Coetzee
• Editora Companhia das Letras
• 304 páginas, R$ 44
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