sábado, 15 de junho de 2013

Vida antes da morte - José Castello


O Globo - 15/06/2013

Na primeira página de “Hanói” (Alfaguara),
novo romance de Adriana
Lisboa, um médico se distrai
revirando entre os dedos um pequeno
elefante de pedra verde,
enquanto anuncia a um jovem paciente,
o vendedor David, que ele tem um câncer
incurável na cabeça e só lhe restam poucos meses
de vida. O elefante de jade não funciona para o
médico só como um escudo que o protege do silêncio
agudo do rapaz, “já que as palavras de David
pareciam estar enfiadas dentro de alguma gaveta”.
É conhecida a preferência desses animais
pela morte distante e solitária. A pequena estátua,
portanto, é também uma metáfora que anuncia o
destino que David traçará, a partir do diagnóstico,
para si mesmo. Uma espécie de Terra Prometida,
que se chamará Hanói.

Decide não dramatizar a condição de doente
terminal. “Estava claro que o mundo passava ao
largo do drama. As pessoas é que empurravam
adjetivos para dentro das coisas”. O câncer tira os
adjetivos do mundo e o entulha com substantivos
brutais. Não imagina, porém, que, empurrado
pela notícia da morte próxima, ele será tomado
pela ideia fixa de um destino. Sua posição me
leva a lembrar de uma frase que ouvi do escritor
Herbert Daniel (1946-1992) poucos dias depois
que ele recebeu um diagnóstico de Aids — doença
que, enfim, o matou. “Não importa saber se há
vida depois da morte, o que importa é saber se
há vida antes da morte”.

A frase de Daniel poderia ser repetida por David.
Ele não chega a dizê-la, mas ele a vive. O destino
coloca em seu caminho a vital Alex, uma
descendente de vietnamitas, que trabalha no
caixa de um pequeno mercado de Chicago. Seu
chefe é um ex-monge budista, um certo Trung.
Sempre que pensa nos velhos vietnamitas e em
seus traumas de guerra, vem à mente de Alex
uma estranha palavra, um conceito emprestado
da física, “desde sempre uma de suas matérias
preferidas”. A estranha palavra é “resiliência”. O
Houaiss a define como a “propriedade que alguns
corpos apresentam de retornar à forma original
após terem sido submetidos a uma deformação
elástica”. No sentido figurado, ela fala da adaptação
à má sorte, ou às mudanças imprevistas. Não
imagina a garota que a palavra aponta, também,
para o esforço que David empreende. Como tirar
da morte um pedaço de vida? Ou — seguindo a
pista de Daniel — como viver
antes da morte?

A mãe de Alex, Huong, e sua
avó, Linh, imitando os elefantes,
retiraram-se há algum tempo
para uma pequena cidade a cinco
horas de Chicago. David, porém,
não quer abandonar o
mundo: ele busca, ao contrário,
um “plano de ação” para permanecer
vivo. Não a salvação da
morte, mas do tempo que a antecede.
Doa todos os seus bens,
a começar por um aquário, e guarda, além de poucas
roupas, apenas seu amado trompete. Teme
que, como acontece com os doentes graves, venha
a se esquecer do mundo e se centrar apenas em si
mesmo. Não: ele quer o mundo, mais do que nunca
ele o deseja. Mas o que exatamente deseja? Precisa
de um plano, isto é, de um destino, que lhe será
dado por Alex: Hanói. Nunca pensou em visitar
a capital do Vietnã — mas é justamente este “nunca
pensar” que torna a escolha mais convincente.
Não pode imaginar que, num futuro próximo, Alex
a viverá por ele.

É esfumaçada a atmosfera que envolve o belo
romance de Adriana Lisboa. Medita David: a normalidade
é fosca, exatamente
como o céu de Chicago, mas
agora ele precisa de um ponto
de luz. Recusa o papel de doente:
“Viraria um objeto com coisas
a dizer, às quais ninguém
prestaria atenção porque objetos
não falam, e quando falam as
pessoas fingem não ouvir”. O
que fazer com o tempo que lhe
resta? Luta para não permitir
que a tristeza o obscureça: luta
por um caminho que acolha a
vida. Erguido sobre um emaranhado de nós, como
uma longa e delicada trança, o romance de Adriana
entremeia as vidas de David e de Alex, e a elas
mistura as de Trung, Huong e Linh, entre outros
personagens. Para se contrapor à grande desordem
que a doença lhe trouxe, David se fixa em
uma ideia: a de que, quando ele fechar os olhos, o
mundo continuará a existir exatamente como é.
“Quem foi que disse que seu mundo é mais relevante,
sério ou verossímil do que o mundo dos
outros?” A consciência de si é a consciência de
nossa insignificância.

Já Alex — para quem tudo importa e o mundo
não passa da soma de coisas pequenas — envolvese
cada vez mais com o rapaz. Pouco importa se
David tem, muitas vezes, o “desejo de derreter na
chuva”, interessa, sim, que ele continua vivo. Claro,
na mente de David as coisas começam a se embaralhar.
Dúvidas graves aparecem. “Como é que
aquilo que era se torna o que não é mais?”, ele se
pergunta. Sem compreender o fio que ata vida e
morte, ele deseja apenas que a despedida seja doce.
Pergunta, então, a Alex para onde ela iria se pudesse
fazer uma viagem. Precisa de um sonho,
nem que seja de um sonho emprestado. Ela, sem
vacilar, pensa na terra de seus antepassados: Hanói.
“Eu preciso ir para algum lugar quando deixar
o apartamento. Queria que alguém escolhesse para
mim”. O destino de seus últimos “quatro ou cinco
meses de vida” está traçado. Hanói se torna a
Terra Prometida — embora não passe, hoje, de
uma caótica metrópole de sete milhões de habitantes.
Transforma-se na utopia que manterá David
amarrado à vida. Não é algo que ele descobre, é
algo que ele inventa. Se é possível continuar a inventar,
ainda é possível viver.

Aos 32 anos, chega assim a seu próprio desejo.
Alex ainda tenta convencê-lo de que lhe basta
“imaginar Hanói”. A imaginação tem suas vantagens:
nela você tem como evitar as experiências
desagradáveis. Mas David quer mais que a imaginação
“pura”, que não passa de uma anestesia.
Busca a imaginação encarnada na vida. Reflete: “ir
embora é uma história que você começa a contar e
que, como o início de todas as histórias, vale não
pelo que significa, mas pelo que pode vir a significar”.
A frase do rapaz vale também para o romance
de Adriana Lisboa que, com uma narrativa armada
sobre coisas humanas e comuns, nos transporta
para muito além do que nos habituamos a ser.
Existe outro papel para a ficção?

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