sábado, 15 de junho de 2013

'Foucault viu neoliberalismo como o novo'

folha de são paulo
Em livro lançado no Brasil, Geoffroy de Lagasnerie examina fascínio de intelectual esquerdista por essa ideologia
Segundo professor de sociologia francês, o filósofo enxergou elementos positivos em teorias neoliberais
CASSIANO ELEK MACHADODE SÃO PAULOO caminho de Michel Foucault até o palco no qual proferia suas aulas, no Collège de France, não era fácil. O filósofo francês tinha que, literalmente, saltar sobre as pessoas que se aglomeravam na arena da prestigiada escola de ensino superior em Paris.
Projetado para 300 pessoas, o espaço nunca tinha menos de 500 ouvintes.
Mas Foucault (1926-1984) não era de se assustar com caminhos difíceis. No período no qual lecionou no Collège de France, entre 1971 e 1984, quando morreu, ele já era um dos mais célebres, mas também um dos mais polêmicos intelectuais do país.
Poucas vezes, porém, Foucault causou tanto burburinho quanto no seminário que ministrou entre 10 de janeiro e 4 de abril de 1979.
Consagrado como pensador icônico da esquerda francesa, se propunha, quarta-feira após quarta-feira, a dissecar um tema indigesto para os espectros ideológicos "canhotos": o neoliberalismo.
"E se Foucault, no fim da vida, estivesse virando um liberal?", foi a questão que reverberou de bate-pronto nas universidades mundo afora.
No ano passado, um jovem sociólogo e filósofo conterrâneo de Foucault resolveu enfrentar a velha pergunta. Também pelo rumo difícil.
Em "A Última Lição de Michel Foucault" (Fayard, 2012), agora lançado no Brasil, pela editora Três Estrelas (do Grupo Folha), Geoffroy de Lagasnerie, 32, se debruça sobre o fascínio do intelectual com alguns aspectos neoliberais.
"Foucault não denuncia o neoliberalismo. Ele não adere à percepção espontânea dessa tradição como algo negativo", opina Lagasnerie, em entrevista por e-mail à Folha. "Ao revés, ele pensa que há algo de positivo no neoliberalismo."
O autor compara o movimento de Foucault a uma manobra intelectual de um dos pensadores mais admirados (e, depois, mais criticados) por ele: Karl Marx.
Segundo Lagasnerie, Foucault evoca um "espírito idêntico" ao de Marx quando este atacou a relação dos socialistas alemães com o capitalismo, no texto "Crítica do Programa de Gotha" (1875).
"Ele tenta entender o que o neoliberalismo produz, teoricamente e politicamente, e quais são seus efeitos, da mesma forma que Marx fez com o capitalismo."
De outra parte, o autor de "A Última Lição de..." sustenta que é justamente para tentar se afastar de Marx, em meados dos anos 1970, que Foucault chegou aos liberais e neoliberais.
ANTIMARXISTA
"Foucault talvez tenha sido um dos pensadores mais antimarxistas e anticomunistas da França ao longo desta década", diz à Folha.
"Isso não significa, claro, que ele tenha tido alguma proximidade com a direita. Mas queria inventar, criar, imaginar como poderia ser uma teoria e uma prática radical não-marxista."
Foucault estaria particularmente interessado nos novos sentidos que neoliberais como o economista austríaco Friedrich Hayek (1899-1992) deram a conceitos como Estado, dominação, minorias e sociedade.
Para o professor, "o conceito central da abordagem neoliberal não é, como se costuma pensar, o de liberdade. É o de pluralidade".
"O neoliberalismo desenha uma imagem de um mundo essencialmente desorganizado, um mundo sem centro, sem nenhuma unidade, sem coerência e significado. Em outras palavras, nenhuma sociedade."
Lagasnerie considera que o insight mais importante de Foucault no seminário de 1979, chamado "Nascimento da Biopolítica" (há versão em livro publicada no Brasil pela Martins Editora) diz respeito à relação estabelecida por ele entre o neoliberalismo e o pensamento crítico.
"O pensamento neoliberal não tenta legitimar o Estado ou a soberania política, como a filosofia política ou a teoria do contrato social. Pelo contrário, elabora uma nova questão política: por que é necessário o governo?"
Professor de sociologia no Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences-Po), e autor de outros três livros, Lagasnerie afirma que seu livro foi recebido raivosamente por estudiosos ("felizmente não todos") de Foucault.
"Leram meu livro como se fosse a favor' do neoliberalismo e se quisesse ter sustentado que Foucault poderia ter sido neoliberal. É um erro", expressa.
"Para entender os interesses de Foucault no neoliberalismo é necessário deixar de lado a questão a favor' ou contra' o liberalismo, assim como a visão de que o neoliberalismo seja conservador. Os textos de Foucault são estranhos e desafiadores precisamente porque não batem com nossas expectativas."
    CRÍTICA ENSAIO
    Autor recorre a ícone da esquerda para defender que ela se reinvente
    PATRÍCIA CAMPOS MELLODE SÃO PAULOQue um intelectual de esquerda resolva investigar desapaixonadamente o neoliberalismo parece ultrajante. Que esse intelectual seja Michel Foucault, ícone da esquerda radical, é heresia.
    Em "A Última Lição de Michel Foucault", Geoffroy de Lagasnerie mostra como Foucault dedicou seus derradeiros anos a tentar entender, sem preconceitos, os fundamentos do execrado neoliberalismo no curso "Nascimento da Biopolítica" (1979).
    Foucault tentou desconstruir clichês da esquerda em seus ataques ao neoliberalismo, colocando-se no lugar de autores neoliberais como Friedrich Hayek, Milton Friedman e Gary Becker.
    Argumentou que o neoliberalismo não era uma teoria reacionária e que o "mercadismo" tinha um aspecto revolucionário, que queria subverter a ordem existente.
    No mercadismo, diz Foucault, "nenhuma autoridade particular é reconhecida. Ela subordina-se à avaliação utilitarista. Não é dotada de valor em si mesma, mas apenas se os seus ganhos forem superiores a seus custos --de maneira que a própria ideia de obediência, de respeito à autoridade, não faz sentido no arcabouço neoliberal".
    EMANCIPAÇÃO
    Não que Foucault defenda os resultados e alvos do neoliberalismo --como acabar com o estado do bem-estar social. Mas reconhece méritos em uma teoria que questiona o Estado na sua atual forma. Para Lagasnerie, "há alguma coisa de emancipador, de crítico que se elabora e também se instaura através do neoliberalismo".
    Isso porque o neoliberalismo conseguiu se emancipar "do pensamento de Estado", "não vai, como os revolucionários e teóricos do iluminismo, pensar em termos de direito, legitimidade, contrato... e sim avaliar a lei do ponto de vista de sua utilidade ou inutilidade".
    O autor argumenta que a esquerda se vê em lugar invertido hoje: vê a nossa sociedade e forma de governo como os positivos e o neoliberalismo como a ameaça de destruição dessa civilização.
    "Hoje nos vemos confrontados com a necessidade de reinventar a esquerda."
    A denúncia ao neoliberalismo embotou a capacidade de raciocínio das esquerdas. Ainda mais agudamente após a crise financeira de 2008, em que o crescimento incontido e não regulado de instrumentos financeiros levou à bancarrota de países e pessoas.
    Tornou-se difícil ter uma visão não maniqueísta diante da lógica "comunidade e ação do Estado" para cuidar de distribuição de riqueza e maximização do bem comum versus o "mercado impessoal e frio" concentrando renda.
    "É urgente nos livrarmos dessas matrizes analíticas com que normalmente abordamos o neoliberalismo."
    Para Lagasnerie, Foucault não "virou a casaca". Mas, ao mergulhar no pensamento liberal, aproveitou para repensar dogmas da esquerda.
      RAIO-X G. DE LAGASNERIE
      FORMAÇÃO
      Nascido em 1981, doutorou-se pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. É professor no Institut d'Études Politiques de Paris
      OUTROS LIVROS
      "L'empire de l'université" (2007) e "Sur la science des ceuvres" (2011) e "Lógique de la création" (2011)
        RAIO-X MICHEL FOUCAULT
        BIOGRAFIA
        Nascido Paul Foucault, em 1926, em Poitiers, na França, estudou na École Normale Supérieure de Paris, foi professor das universidades de Uppsala (Suécia), de Túnis (Tunísia) e do Collège de France. Morreu em 1984
        PRINCIPAIS LIVROS
        "História da Loucura" (1961), "As Palavras e as Coisas" (1966), "A Arqueologia do Saber" (1969), "Vigiar e Punir" (1975) e "História da Sexualidade" (1976)

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