segunda-feira, 22 de julho de 2013

Claudio Luiz Lottenberg e Danilo Cymrot Tendências/Debates

folha de são paulo
cLAUDIO LUIZ LOTTENBERG
TENDÊNCIAS/DEBATES
Momento de oportunidade
A superespecialização é legítima, mas uma alternativa mais adequada seria a vivência em campo como médico generalista
O papel do médico tem mudado. Além de atender, a ele cabe orientar o paciente em seu estilo de vida, coordenar a assistência de outros profissionais, monitorar o uso de medicamentos e, sobretudo, ser o elo de confiança entre o ser humano e as diferentes vertentes tecnológicas.
Um profissional no exercício técnico de suas funções necessita mais do que a sua boa e sólida formação. Necessita de apoio de outros profissionais, de tecnologia e de condições que lhe permitam exercer o ato profissional com plena satisfação. A distância dos grandes centros, pela iniquidade de recursos, é prejudicial e só pode ser aprimorada por movimentos incentivados.
A atual dinâmica da formação educativa médica pressupõe um caminho que leva à superespecialização. Isso é legítimo no contexto da ambição pessoal, mas uma alternativa mais adequada à realidade brasileira seria um currículo que exigisse como pré-requisito médico uma vivência em campo como médico generalista.
Essa alternativa, compartilhada por médicos com ampla visão dos problemas de saúde no Brasil, tem consonância com a proposta de estender os cursos de medicina de seis para oito anos e incluir um período de atendimento em unidades de serviço público.
A proposta de mudança feita pelo governo federal é positiva. O equívoco está em tentar criar a sensação de que medidas como essa ou a importação de médicos vá resolver os problemas. Os dados de exigibilidade de médicos per capita, por exemplo, não traduzem uma consistência pautada por bases sólidas.
Os perfis epidemiológicos, a coexistência de profissionais paramédicos ou não, as instalações, a existência ou não de recursos de maior ou menor complexidade, os processos ambulatoriais não permitem que essa aritmética seja levada a sério sempre.
Entre alunos médicos que se graduam e aqueles que param de trabalhar, o incremento anual é de 6.000 profissionais. Será que é suficiente para dar conta dos desafios onde houve uma explosão demográfica? As pessoas estão vivendo mais, aumentando a sobrecarga e a demanda por serviços de saúde.
As propostas do governo representam uma oportunidade para a classe médica levar adiante uma discussão na dimensão de que o país precisa e com a participação de todos os atores sociais envolvidos. Mais do que os impactos da importação de médicos e do novo modelo proposto para formação dos profissionais, devemos discutir questões estruturantes, pensando, principalmente, no longo prazo, e não apenas em medidas imediatistas.
Há várias vertentes a serem consideradas e uma delas é a educação. Se faltam médicos, também faltam estruturas, em quantidade e qualidade, para a sua formação. Faltam investimentos para criação de infra estrutura para medicina preventiva e assistencial que tornem os municípios atrativos para prestação de serviços de maneira segura.
Na última avaliação do Conceito Preliminar de Curso (CPC), do Ministério da Educação, em 2011, nenhum dos cursos de medicina obteve a nota máxima (cinco). Ao mesmo tempo, o número de candidatos quase dobrou em dois anos, de 390 mil em 2009 para 690 mil em 2011.
Isso aconteceu devido às facilidades criadas pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e à possibilidade de ingresso por meio da prova do Enem. Sem a criação de novas vagas e com a procura maior do que a oferta, falta estímulo para a melhoria da qualidade.
A sociedade espera soluções concretas e o principal papel que a classe médica pode ter nesse processo é alertar o governo para o risco de medidas que podem ser paliativas para alguns sintomas, mas não resolvem os verdadeiros problemas do paciente. O processo do consenso, longe da unanimidade, deve ser construído com a participação da sociedade. Toma tempo, mas certamente é o único modo que converge para a forma estruturante.
DANILO CYMROT
TENDÊNCIAS/DEBATES
Fala proibida, morte ostensiva
Prossegue a política de naturalizar a associação da violência com o funk, como se um estilo musical fosse causa de morte
O tiro que matou MC Daleste foi o tiro que silenciou a voz incômoda que denunciava a dura realidade vivida por milhares de jovens nas periferias das grandes cidades brasileiras. Paradoxalmente, foi o tiro que deu visibilidade máxima a um jovem que, como outros, estava em busca de reconhecimento social.
Nada mais emblemático que o tiro tenha sido dado quando MC Daleste estava em cima do palco e que a gravação da cena tenha sido vista por milhões de pessoas que só conheceram o grande ídolo da periferia após a sua morte.
Para grande parte da sociedade, jovens da periferia só obtêm visibilidade quando associados a episódios violentos, realçando-se mais sua condição de autores do que a de vítimas. A demanda por visibilidade é ainda mais trágica diante do pedido do MC para que sua foto baleado fosse colocada no Instagram.
Em uma sociedade que tem a ascensão social e o consumo como principais metas culturais, o funk proibidão, acusado de fazer apologia ao crime, e o funk ostentação, que faz apologia ao consumo, são mais complementares do que antagônicos. Ambos expressam a recusa de uma posição subalterna por pobres assalariados.
O primeiro, por meio da associação com o tráfico. O segundo, pela associação simbólica com bens de consumo de luxo. No entanto, o funk ostentação é mal visto em uma sociedade na qual o consumo de marcas distingue cidadãos. Classes altas não gostam de ver seus espaços exclusivos invadidos e marcas luxuosas não querem ser associadas a "funkeiros favelados".
Embora fosse um dos principais representantes do funk ostentação e ganhasse com seus shows dinheiro suficiente para viver em um bairro nobre, MC Daleste, que não teve banheiro em casa até os 13 anos, não deixou sua comunidade. Cantava para ela e dela vinha seu sustento.
Ainda que cantasse, no clipe póstumo "São Paulo", uma vida em mansões e vestisse correntes de ouro, morreu ostensivamente em frente a um conjunto habitacional popular, engrossando uma cifra ostensiva. Sua morte foi espetacular, mas assustadoramente comum.
Em junho de 2012, escrevi neste espaço um artigo sobre a criminalização do funk e o extermínio de MCs. Até então, cinco ídolos do funk da Baixada Santista haviam sido assassinados. Prossegue a política de naturalizar a associação da violência com o funk, como se um estilo musical fosse causa de morte.
Para setores conservadores, a crítica de jovens da periferia à atuação da polícia, se não legitima os assassinatos, pelo menos legitima a negação de seu direito à segurança.
O primeiro tiro, que atingiu MC Daleste de raspão, foi certeiro em explicitar a banalização da violência em certos territórios da cidade, nos quais as balas não são de borracha. O MC permaneceu cantando. Houve no público quem acreditasse se tratar de um tiro disparado para o alto ou de um efeito musical característico de proibidões, a trilha sonora de um filme em que ficção e realidade se misturam. Dessa vez, não se tratava nem de um jogo de computador nem de uma glamourosa minissérie televisiva.
Como qualquer artista, MC Daleste era alvo das projeções de milhares de jovens que sonham com ostentação, mas acabou sendo mais um alvo dos projéteis que traçam a realidade cantada em proibidões.

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