Ninguém fica invisível quando se conecta. Ninguém mais pode viajar às escondidas
O condutor do Vaporetto olha displicentemente a paisagem empunhando um celular. Os passageiros entram e saem. Uma garota atende do outro lado da linha.
Ele propõe um sorvete para aquela noite. Ela responde não, não e não. O condutor faz cara de paisagem. Arsenale, Pièta, San Marco-San Zaccaria. Passageiros continuam a entrar e sair.
Os italianos usam intensamente o celular há décadas. Lembro de Roma, muitos anos atrás. Rapazes com roupas e cabelos bem cortados falavam nas ruas com os seus aparelhos enquanto se locomoviam rapidamente para seus destinos.
Um senhor mais velho retirava uma cerâmica do chão, bem embaixo da sua calçada, num achado arqueológico casual.
Penso na história da tecnologia e no conceito que se faz dela hoje. Penso no que os antigos nos deixaram como história material, as cerâmicas, as cidades, as estradas, os aquedutos, as tapeçarias, os palácios, as pontes, as esculturas, os sinos, as torres, as pinturas.
Leio agora que o ex-presidente da Telecom Itália acaba de ser condenado à prisão. Penso nos conspiradores, nos corruptos, nos condenados que passaram pela ponte dos Suspiros que leva às masmorras no palácio Ducale. Masmorras maiores, mais arejadas e mais iluminadas que tantos quartos de empregada do Brasil de hoje.
Masmorras bem trancadas, com grades e cadeados que venceram os séculos. Leio sobre a sala de tortura onde confissões eram arrancadas ou forjadas. Arquitetura e tecnologia a serviço de manter o poder nas mãos de quem já o tem.
Olho as figuras retratadas nas pinturas do século 16. Tintoretto, Veronese. Políticos, anjos, mitos, nobres, santos, Deus. O touro e o rapto de Europa. A madeira talhada, a sala de armas, os canhões, as espadas, os escudos, as pistolas, as armaduras. Penso na peste negra que um dia dizimou metade da população local.
Volto um instante para a atualidade, as armas químicas, a ausência de armas químicas, os antibióticos, a falta de antibióticos, os drones, as guerras tribais. Lembro da Atenas bombardeada.
Vejo as esculturas gigantes no palácio Ducale e penso na admiração infinita que a arte grega clássica inspirou. Técnica, tecnologia. A destruição da arte. A sobrevivência da arte. Não vim a Veneza para me desintoxicar de equipamentos eletrônicos. Seria apenas um efeito colateral desejável.
E, a bem da verdade, nem pensei muito neles. Até que o telefone, que eu programara sem roaming para evitar as tarifas obscenas e usava como máquina fotográfica, tocou.
Eu subia a torre da piazza San Marco. A ligação ficou ruim. Confiei em não me preocupar.
O que eu poderia fazer lá de cima? À noite, quando eu me ligasse ao wi-fi do hotel, haveria algum e-mail, algum WhatsApp, algum Instagram me esperando.
Ninguém fica invisível quando se conecta. Ninguém mais viaja escondido. As muralhas que podiam separar a vida privada da vida profissional foram seriamente danificadas. Se o condutor não tivesse telefonado para a garota durante a jornada, talvez pudesse continuar sonhando com o sorvete da noite por mais algumas horas.
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