Memorialista do afeto
Em Carta ao filho, a psicanalista Betty
Milan faz da escuta e da fala instrumentos de libertação. James Joyce e
Madame de Sevigné são interlocutores nessa jornada
Claudio Willer
Estado de Minas: 27/07/2013
Esta é a função da memória: libertação”,
escreveu T. S. Eliot em um dos Quatro quartetos. O trecho poderia ser
uma epígrafe de Carta ao filho, de Betty Milan (Editora Record). E de
boa parte do restante da sua obra. Não só por evocar, mas por trazer
para o texto o fluxo da memória. Por isso, tem cronologia própria:
aquela do afeto a despertar evocações.
A frase de Eliot poderia
ter um enunciado circular: a libertação por meio da memória, sim – mas
desde que a memória esteja liberada, manifestando-se de modo autônomo,
para resultar em um registro original. Betty embaralha calendários, e as
160 páginas desse livro têm a forma de um amplo painel. Nele,
sucedem-se os encontros e viagens; antepassados, a família, tempos
estudantis; episódios e circunstâncias que se transformaram em temas de
outros de seus livros.
Começa pelo nascimento, narrado de modo
muito poético: “A estação das cerejeiras começou no dia em que você
nasceu”. Nascimento do filho, de frutos e de uma nova identidade: “...
sem você eu não existo. Desde que você nasceu, tenho o dom da
ubiquidade. Me transporto para onde você estiver”. Duplo dom, exercido
nesta e em outras de suas narrativas: deslocar-se no espaço, ubiquidade,
e no tempo, nesse relato que vai e volta, em um jogo do presente, do
tempo da própria escrita, e de sucessivos estratos, cenas e
circunstâncias. Rede associativa, em que uma cena, episódio ou
circunstância leva a outra, é um hipertexto – talvez toda obra literária
de peso, com substância, o seja – pelo modo como remete a outros de
seus escritos, assim como ao que outros também escreveram: à literatura,
à palavra restituída em sua integridade.
Autores comentados, de
Madame de Sevigné a James Joyce, não são apenas referências
bibliográficas, textos lidos, porém personagens familiares: fala deles
como se os conhecesse e tivesse conversado com eles, além de dialogar
com suas obras. Interessante como, nas observações sobre esses dois
autores, focaliza as relações com a família: o pai em Joyce, também um
viajante, a filha em Sevigné. Enxerga neles temas fortes em sua própria
obra.
Diz: “O ponto de partida para o que eu escrevo é o que eu
vivo”. A vida plenamente vivida, não-burocrática, insubmissa à repetição
do mesmo – suas viagens e as circunstâncias que as precederam o
atestam; sua expulsão da Sociedade Brasileira de Psicanálise, bem como a
demissão de uma clínica psiquiátrica em Paris são qualificações
curriculares. Interessante como, em um jogo de espelhos, detém-se em
dois choques do filho com instituições, uma francesa, outra alemã – a
segunda, marco de mudanças pessoais.
O poema aqui citado de Eliot
prossegue assim: “Libertação – não apenas amor, mas expansão/ De amor
para além do desejo, como também libertação/ Do passado e do futuro”.
Betty Milan responde: “Porque só o amor justifica a existência”. Por
isso, foi visitar o túmulo de Inês de Castro, em Alcobaça. E uma
passagem especialmente intensa do livro, ponto alto, é aquela em que
relata o primeiro encontro com o futuro marido e pai, culminando com um
encontro no “Train bleu” e a lua de mel em uma implausível Varsóvia.
O
trecho de Quatro quartetos tem evidente raiz platônica, assim como boa
parte da obra desse enorme poeta. Para o filósofo grego, anamnese é
transcendência, superação da contingência, recuperação da verdadeira
identidade. Mas, se em Platão a libertação é rememoração de vidas
anteriores, e o verdadeiro eu é uma instância transcendental, para Betty
Milan ela se realiza na vida; e através da escuta e da fala.
Falar
é um imperativo. Daí seu pendor pela dramaturgia, e livros seus terem
formato de narrativa epistolar, prolongamento ou ampliação do diálogo.
Um de seus livros precedentes chama-se Fale com ela; outro, Quem ama,
escuta. “Escutar é uma arte”, diz. Pratica-a. Cresceu ouvindo
sonoridades árabes da fala de seus avós; e, logo em seguida, o inglês e o
francês: “A educação pelas línguas prepara para a viagem e desperta o
interesse pelo outro”. E que outro – internos no Juqueri, onde estagiou;
e em Saint-Anne, o mesmo hospício onde esteve Artaud em 1939: “Porque
os ‘loucos’ desafiavam continuamente a minha lógica”. Ouvindo pacientes,
fez a crítica aos psiquiatras.
Betty Milan, a ouvinte. Por
isso, dialogou com uma diversidade de personagens de relevo, parcela
significativa da cultura do século 20, que tinham algo a dizer-lhe:
Joãosinho Trinta, Carlito Maia, Zé Celso Martinez Corrêa e Jacques
Lacan, entre outros, além de entrevistados em dois livros – um deles,
com um título emblemático: A força da palavra.
Fez parte de uma
cultura de resistência, mesmo não sendo protagonista ou militando em
alguma organização. A vivência pessoal e acontecimentos relevantes das
últimas décadas se confundem. Ter vivido é participar da história. Saiu
do Brasil pela primeira vez por permanecer aqui ter-se tornado perigoso,
além de irrespirável. Semelhante registro traz à tona uma memória
individual que também é coletiva. Sendo biografia, Carta ao filho é
relato histórico. Fala de si, do filho a quem se dirige, do marido, bem
como do amante, da família e de outros personagens – e de seu tempo, do
Brasil e de boa parte do mundo. Possibilita a anamnese de cada leitor,
mesmo que não tenha tido relação ou envolvimento direto com os fatos
relatados: verá mais de si e do mundo ao viajar por essa narrativa;
sairá dela com maior apreço pela liberdade, sua e dos outros.
. Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor
CARTA AO FILHO
. De Betty Milan
. Editora Record, 160 páginas, R$ 29,90
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