Amor por encomenda
Atrasada, série Amores Expressos rende mais 3 livros e 'DR' sobre limites da literatura por demanda
Mais dois livros da coleção acabam de chegar às livrarias: "Ithaca Road", de Paulo Scott, e "Digam a Satã que o Recado Foi Entendido", do colunista da Folha Daniel Pellizzari. O próximo, "Barreira", de Amilcar Bettega, será lançado no começo de agosto.
Com esses, a série chega a dez livros publicados pela Companhia das Letras, editora oficial do projeto (veja ao lado). Dos sete restantes, um foi recusado pela Companhia e saiu pela Rocco; outro, também recusado, está em negociação com outras editoras; e cinco estão sendo reescritos ou revisados, sem previsão de lançamento (veja na pág. E4).
O time do projeto, heterogêneo, misturava autores consagrados e jovens talentosos.
Mais do que amor, a iniciativa lançada em 2007 surgiu na cena literária como uma paixão arrebatadora, daquelas que causam ciúme, ressentimentos e acusações.
A ideia inicial do produtor Rodrigo Teixeira, criador do Amores Expressos, era angariar recursos via Lei Rouanet (mecanismo de captação de dinheiro com renúncia fiscal) para bancar parte da coleção, orçada em R$ 1,2 milhão.
SEM LEI
A possibilidade de financiamento público despertou a ira de escritores e blogueiros, que criticaram ainda a temática e o critério de escolha dos autores, que teria privilegiado amigos de Teixeira e do escritor João Paulo Cuenca, também idealizador da série.Com a polêmica, Teixeira desistiu das leis de incentivo e, com dois sócios, financiou o projeto, reduzido a R$ 560 mil. Em troca, teria o direito de adaptar os romances para o cinema. O acordo estipulava que cada escritor teria um ano para concluir seu livro. "Nunca achei que demoraria tão mais que isso", diz Teixeira.
Tema fechado inibiu a imaginação e atrasou conclusão das histórias, dizem autores do projeto Amores Expressos
Produtor da série diz que que terá lucro; demora na entrega foi normal, segundo o editor da Companhia das Letras
Crises de inspiração, acúmulo de trabalho e dificuldade em lidar com o tema da série partiram o coração de muitos escritores do projeto Amores Expressos.
"Esse negócio de livro de encomenda não deu certo para mim", assume Reinaldo Moraes. Pelo projeto, ele foi para a Cidade do México no final de 2007. Tentou escrever sua história de amor logo em seguida, mas perdeu-se em meio a detalhes da trama.
"Queria fazer um thriller simples, mas me enrolei com a genealogia do protagonista. Já estava com umas 200 páginas escritas e ele ainda não tinha chegado ao México."
Enquanto desenvolvia a trama, Moraes também viu-se assoberbado com outros trabalhos: finalizou "Pornopopeia", lançado em 2009, e começou outros dois livros.
Pretende retomar a história mexicana, em versão mais enxuta, assim que concluir os outros dois --o que espera fazer em breve.
"Fiquei muito tolhido por ser encomenda. Ainda acho que a literatura é um templo sagrado", diz. "Livro de encomenda só aceito de novo se estiver passando fome", completa, aos risos.
A história de amor de Lourenço Mutarelli também não teve até agora seu beijo final em frente ao mar. Ele concluiu seu livro sobre Nova York no começo de 2009. Diz que a Companhia das Letras fez uma série de restrições --por exemplo, contra as citações que abriam cada capítulo. "Mas o romance era muito ruim mesmo, acabei concordado com eles", diz.
Mutarelli acatou as mudanças sugeridas, mas aí foi ele que não ficou satisfeito.
Uma espécie de bloqueio em relação à trama deixou o livro "descansando" por um tempo. Agora resolveu recomeçar do zero.
Antonio Prata teve dificuldades parecidas ao voltar de Xangai, mas com um agravante --a encomenda feita pelo projeto Amores Expressos seria seu primeiro romance. Tentou duas versões de sua trama, mas não gostou do resultado.
"A dificuldade é uma questão inerente à escrita. A produção de um romance é sempre difícil, demorada, independentemente de ser encomenda ou não", argumenta.
Embarcar em sua primeira trama longa também exigiu mais esforço de Antonia Pellegrino, que pretende entregar sua história passada em Bombaim em setembro.
"Voltei da Índia em dezembro de 2007 e comecei a escrever logo em seguida, mas achei o material ruim e eu mesma abortei", relembra.Depois de "uma certa ressaca" com a história, iniciou uma nova versão em 2011.
"Eu faço roteiro para cinema e TV, mas encomenda em literatura é muito difícil. Exige uma entrega muito maior. São naturezas muito diferentes."
O problema de Adriana Lisboa foi mais específico. Ela conta que em janeiro de 2008 concluiu seu livro situado em Paris, mas deparou-se com uma "questão estrutural quase insolúvel".
O romance é inspirado em uma história real --ela não revela qual--, e a escritora não sabe se deixa isso explícito logo no início do livro ou não.
Nesse meio-tempo, Lisboa escreveu dois outros livros, incluindo "Hanói".
Sobre a coleção de histórias de amor ainda está em dúvida. "Pode ser que eu retome o livro para reescrevê-lo, ou aproveite partes dele noutro trabalho, ou então que eu desista de tudo."
SEM PRESSÃO
André Conti, que editou pela Companhia das Letras três livros da coleção, avalia que a periodicidade dos lançamentos foi dentro do padrão.
"Livro leva um tempo mesmo. Você não pode tirar a fórceps de ninguém", diz.
"Por ser de encomenda, um trabalho não vai ser necessariamente menos pessoal. O livro do Bernardo Carvalho, por exemplo, é um dos melhores que ele já escreveu. O do Paulo Scott é outro baita livro, é o estilo dele puro", completa.
Apesar de todos os infortúnios, os escritores do projeto contam que Rodrigo Teixeira, criador da coleção, nunca exerceu qualquer pressão.
"Percebi que não tem como botar prazo em literatura. O autor precisa de uma série de atividades paralelas para sobreviver. Por isso não podem focar seu tempo apenas na produção de um livro."
No momento, ele prepara a adaptação para o cinema dos dois primeiros livros a serem lançados, "Cordilheira", de Daniel Galera, e "O Filho da Mãe", de Bernardo Carvalho.
Esse último terá como roteirista Julian Fellowes, criador da série de TV "Downton Abbey". "Se tudo der certo, só com esses dois filmes já pago a conta e fico com lucro."
Teixeira reconhece que nem todos os livros da série irão virar filme, mas diz que o resultado geral é "muito bom". Depois do começo turbulento, torce por um amor tranquilo para sua coleção.
'Satã' faz de Pellizzari um escritor irlandês
CASSIANO ELEK MACHADODE SÃO PAULO"Daniel Pellizzari é o maior escritor sérvio da literatura brasileira. Além disso, é também o maior escritor argentino da literatura brasileira. E ainda arruma tempo para ser o maior escritor russo da literatura brasileira."Foi assim que o escritor Joca Reiners Terron apresentou Pellizzari, quando o autor gaúcho (nascido no Amazonas e hoje radicado em São Paulo) publicou seu primeiro romance, "Dedo Negro com Unha" (DBA), em 2005.
Sete anos, dez meses e catorze dias --2875 dias-- se passaram até que Pellizzari publicasse seu segundo romance, "Digam a Satã Que o Recado Foi Entendido".
A obra, lançada pela Companhia das Letras, mostra que Daniel Pellizzari, 39, mudou bastante. Com ela, passa a ser o maior escritor irlandês da literatura brasileira.
Não só pelos fatos aqui elencados: 1) o livro é ambientado em Dublin; 2) cita tantos lugares reais, obscuros ou famosos, da cidade, que seria possível criar um site só com suas referências no Google Maps; 3) personagens da mitologia celta, como a deidade pré-cristã Crom Cruach, pontuam toda a obra; 4) há mais cenas com "pints" de cerveja escura em pubs quase escuros do que em toda a ficção do Brasil.
Mais do que tudo isso, "Digam a Satã Que o Recado Foi Entendido" tem uma voz irlandesa. Ou várias vozes.
Polifônico (como as obras do maior autor irlandês, James Joyce), o romance tem seis narradores diferentes, quatro deles nativos, além de um polonês perturbado e um sujeito das Ilhas Maurício.
Os narradores se cruzam. Três deles trabalham numa agência de turismo especializada em lugares mal-assombrados --inventados por eles mesmos--; outros três militam numa seita celta (e ufóloga), que conspira para trazer de volta à Terra um antigo deus-serpente.
Pellizzari, o autor "irlandês", passou apenas 32 dias no país, e em 2007. Mas viveu parte da adolescência com os grossos óculos enfiados em livros e sites ancestrais sobre mitologia celta e temas congêneres. O ocultismo também não lhe é estranho.
"Digam a Satã..." ironiza ou faz escárnio com estes elementos. Como com quase tudo. Desajuste e desencanto, características dos personagens (e de muita literatura irlandesa), dão certo humor (negro) ao livro.
"É o humor do condenado gargalhando diante da forca", opina o próprio Pellizzari. "A risadinha de patíbulo, para conseguir lidar com coisas impossíveis de vencer."
É assim até com o amor, tema da coleção. "Onde há pessoas existem problemas, não consigo enxergar o amor escapando a essa lógica", diz.
CRÍTICO - NOVELA
'Ithaca Road' forma amplo painel sobre geração cosmopolita atual
O LIVRO CORRIA O RISCO DA ARTIFICIALIDADE, NA LINHA DO DOCUMENTÁRIO PARA TURISTA. MAS NÃO
LUÍS AUGUSTO FISCHERESPECIAL PARA A FOLHAPor qualquer ângulo que se tome, "Ithaca Road" merece atenção. Pela carreira do autor, Paulo Scott: experiente em conto, poesia e romance longo, aparece agora com uma novela enxuta e precisa.Pela linguagem: o texto flui otimamente, driblando certeiro as dificuldades impostas pela opção de não dar diálogos diretos, mas sempre no miolo do texto.
Pelo arranjo narrativo: um narrador de terceira pessoa discreto, que dá a ver os personagens diretamente, quase como se não existisse uma consciência externa a eles, e que presentifica as ações de modo eficaz.
Vale conferir ainda por um motivo mais sutil: livro encomendado da famosa e em certo momento polêmica coleção Amores Expressos, "Ithaca Road" corria o risco da artificialidade, na linha de documentário para turista.
Mas não: a história se passa em Sidney, Austrália, com personagens locais, outros vindos de partes distantes do mesmo país e outros ainda estrangeiros imigrantes, tudo levado de modo justo.
A personagem principal, Narelle, é neozelandesa, filha de mãe aborígine e pai inglês. Para somar outras variantes, seu namorado é um repórter investigativo austríaco em missão no distante Brasil.
Toda essa circunstância é tratada de modo eficiente pela narrativa, mesmo nos momentos em que se faz necessário algum esclarecimento para o leitor brasileiro.
E o enredo? Sim, existe, mas é até secundário: Narelle está em Sidney, desta vez para tomar conta do bar-restaurante de seu irmão, a pedido deste, que sumiu porque está falindo nos negócios.
Matéria boa para desdobramentos policiais, que constituem força apenas lateral da novela. O centro mesmo está em Narelle e sua vida errática.
No retrato dessa vida é que o livro ganha maior sentido. Narelle expõe o que talvez seja a cara da geração cosmopolita atual, internética até a alma, que pode viver em qualquer lugar e relacionar-se afetiva ou sexualmente com qualquer pessoa, sem sombra de preocupação com alguma ideia de construir futuro, para si ou para o mundo. Tudo fluido, num drama de baixo impacto, mas sentido amplo.
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