João Paulo
Estado d Minas: 27/07/2013
Há algo extremamente americano no jazz. Sua origem não poderia ser outra, já que a música respira a história do lugar e do tempo em que nasceu e, sobretudo, dos homens e mulheres que a criaram. No entanto, poucas formas musicais conquistaram tantos amantes fora do seu país natal, gerando comunicação que vai além das fronteiras para mirar na dimensão humana da arte. O jazz é do mundo. Talvez por isso dois livros lançados recentemente – Jazz & Co., do poeta e compositor brasileiro Vinicius de Moraes, e Todo aquele jazz, do ensaísta britânico Geoff Dyer – sejam tão interessantes. Com olhar ao mesmo tempo externo e apaixonado, os autores propõem um jeito próprio de falar desse gênero musical.
São trabalhos bem diferentes, separados no tempo por quase 50 anos, escritos com inspiração própria e de olho em leitores com interesses singulares. O livro de Vinicius é, na verdade, uma reunião de textos, reportagens e poemas que têm o jazz como tema, organizado com cuidado por Eucanaã Ferraz, especialista na obra do Poetinha e que vem coordenando a edição de suas obras completas. Sem dúvida, um livro datado, que diz mais de Vinicius pré-bossa nova que propriamente do jazz. Já o ensaio de Dyer, considerado pelos próprios jazzistas um dos melhores livros já escritos sobre a música americana, traz reunião de perfis que mescla pesquisa, análise e literatura.
Escrever sobre o jazz nunca foi fácil. A bibliografia é imensa e vai de grandes tratados como Jazz, do rag ao rock, de Joachim E. Berendt (Editora Perspectiva), a obras como a do historiador marxista Eric Hobsbawn, História social do jazz, escrita com o pseudônimo de Francis Newton (Editora Paz e Terra). A esses se somam volumes de memórias, biografias, trabalhos de sociologia, musicologia, crítica, artigos de filósofos como Adorno (que não gostava de jazz) e romances (entre eles o excelente Buddy Bolden’s Blues, de Michael Ondaatje). A biblioteca jazzística, entretanto, tem sido vista com desconfiança pelos músicos, que se queixam da impossibilidade de traduzir música em outra linguagem – o que também faz com que muitos torçam o nariz para os filmes inspirados nesse gênero musical. Alguns chegam a dizer que a melhor crítica do jazz é o jazz que veio depois, como se apenas a arte fosse capaz de conversar com a arte de igual para igual.
No entanto, é difícil pensar em material mais representativo no campo da cultura do século 20. Além da riqueza histórica, social e estética da música, o jazz legou ao mundo personagens riquíssimos, com vidas intensas. Desde a geração dos românticos, não existiu um grupo de pessoas tão talentosas e condenadas a viver um destino trágico, marcado por dramas sociais de exclusão e preconceito, além da existência atravessada por problemas de toda ordem, com destaque para a loucura, o álcool e as drogas, o que fez com que muitos gênios fenecessem ainda no início de sua trajetória. Esse material e essa tradição dão substância aos livros de Vinicius de Moraes e Geoff Dyer.
Antes da bossa Jazz & Co. é um livro que fala de encontros. Em 1946, ocupando nos EUA seu primeiro posto como diplomata (vice-cônsul em Los Angeles), Vinicius de Moraes (1913-1980) inicia a estadia de cinco anos no país, que, a princípio, detestou. Para ele, a vida americana era “uma sensaboria, uma gente burra e self-satisfied, se achando o suprassumo”, conforme escreveu em carta a Manuel Bandeira, em setembro de 1947. Apenas duas coisas escapavam dessa chatice norte-americana: a turma do cinema – inclusive os brasileiros, comandados por Carmen Miranda – e o pessoal do jazz.
Vinicius logo se enturma, vai a boates e clubes, passa a conviver com Louis Armstrong e Sarah Vaughan, em começo de carreira. Acompanha o nascimento do bebop e do West Coast Jazz, ouve “mil vezes” as apresentações de Billie Holiday Entre os amigos está o casal Nesuhi Ertegun e Marili, proprietários da loja de discos Jazz Man. É com eles que assina seu primeiro artigo sobre a música americana, “O jazz e sua origem”, que seria publicado no Brasil em 1951 na revista Sombra. O texto, que abre Jazz & Co., seria a preparação de um trabalho mais longo, cujas partes referentes ao spirituals e a Nova Orleans, até então inéditas, integram o volume recém-lançado. Os demais textos reunidos pelo organizador são artigos de menor ambição, publicados nas revistas Flan, Vanguarda e Diretrizes e no jornal Última Hora – há de crítica de filmes ao prefácio do livro de Jorge Guinle sobre jazz.
Os textos de Vinicius de Moraes têm a marca da época e do meio em que foram publicados. Há clara intenção didática em contextualizar o nascimento do jazz com a história americana, sobretudo no que diz respeito à escravidão e à violência contra os negros. Além disso, distante da linguagem coloquial que caracterizaria suas letras de canções nas décadas seguintes, Vinicius se perde em muitos adjetivos e palavras pouco usuais, na linha do jornalismo cultural da época, meio beletrista e impressionista. Mas a opção ideológica e estética está lá.
O poeta recupera a origem do spirituals e do blues, recorda os cantos de trabalho e de prisão, o difícil acesso dos músicos negros aos instrumentos ocidentais, a violência e o preconceito expresso em atos e palavras. Destaca a morte de Bessie Smith, a Rainha do Blues, depois de um acidente de carro, em razão de ter seu tratamento recusado por um hospital por ser negra. Pincela informações sobre a civilização creole de Nova Orleans. Mostrando que domina um pouco de teoria, Vinicius analisa algumas características formais do jazz. Elogia o hot jazz e condena todas a formas de amortecimento do gênero visando conquistar o público branco, ironizando até mesmo Gershwin por se valer da tradição que não era a sua (“talvez o melhor dos três piores compositores do mundo”).
Se em matéria de informações não acrescenta muita coisa, Jazz & Co. ajuda a entender a vida do poeta nos EUA e de que forma as marcas musicais do país depois emergem na bossa nova, para a qual o “branco mais preto do Brasil” contribuiu de forma fundamental. Por isso merece destaque o trabalho do organizador Eucanaã Ferraz, autor de prefácio rico e informativo que retoma a ligação de Vinicius com o Brasil naquele período, além de incorporar dados políticos (a perseguição ao comunismo que tomava conta dos EUA na Guerra Fria), sobre a vida pessoal do poeta e acerca das questões sociais do país. Ao lado do apuro editorial do texto e das notas, o projeto gráfico é muito bonito e funcional: ganhou o formato de um antigo compacto, com dezenas de fotos e imagens, sempre bem legendadas, criando a sensação de ter em mãos um álbum ou uma revista da época.
Beira do abismo Com Todo aquele jazz, o escritor Geoff Dyer parece buscar o impossível: escrever como um músico. Em sua mescla de ensaio e ficção, ele parte sempre do tema – fatos reais – e solta a imaginação, como num improviso. O resultado é impressionante. O autor mostra não apenas grande conhecimento da música americana e de alguns de seus principais personagens, como estabelece padrão de realização literária que encanta tanto pela inteligência de suas observações quanto pela emoção que perpassa o texto. Indo da terceira para a primeira pessoa, o livro fala tanto de seus personagens como do desafio de um escritor em busca da melhor forma de traduzir a arte e a vida em palavras.
Quem leu o conto “O perseguidor”, de Julio Cortázar, percebeu o que pode a ficção ao retratar um personagem real ou recriado, no caso o saxofonista Charlie Parker. Geoff Dyer tem outro método: mesmo dando liberdade para que seus perfis ultrapassem a realidade, em nenhum momento perde a ligação com os fatos, sempre buscados em momentos da existência dos artistas que ele tenta abarcar com seus ensaios. Um mistério cerca a vida de homens que se entregaram à arte até o limite. Para traduzir, ou tentar esclarecer alguns pontos dessa trajetória, Dyer mergulha em histórias perpassadas por momentos de iluminação poética.
A estrutura do livro tem como fio a viagem de carro de Duke Ellington e Harry Carney pelos EUA. A narração da jornada é interrompida de tempos em tempos para dar lugar a ensaios dedicados a cada um dos artistas escolhidos pelo autor. Essas análises parecem procurar um ponto de virada, uma situação limite em que cada músico parece perto de deixar flagrar a essência de sua arte. São todos eles, cada um a seu jeito, homens marcados pela dor, pelo sofrimento, pelas drogas, pela violência, pelas perdas, pelo álcool, pela ameaça próxima da dissolução da razão. Ao mesmo tempo, cada um tem algo a dizer por meio de sua música. É essa mensagem intraduzível que o autor procura em meio a sinais difusos.
Cada personagem vale uma história. Thelonius Monk vai para a cadeia ao assumir que a heroína encontrada pela polícia é dele (na verdade, é de Bud Powell) e segue seu périplo de incomunicabilidade até se alhear do mundo. Bud Powell parecia tocar o piano que todos tocavam, mas na verdade todos tocavam como Bud, que padece num sanatório. O imenso Charles Mingus, que carregava seu contrabaixo pendurado no ombro, era capaz de violência contra todos, mas os músicos não se afastavam dele para não perder o contato com a música que trazia, pois a criatividade e a fúria eram nele inseparáveis. Chet Baker sustentava as notas como o rosto de uma mulher prestes a chorar, quando ele se enche de beleza até as bordas, mas foi vendo seu belo rosto se desmanchar em meio à ruína das drogas. Art Pepper, na cadeia, foi reconhecido pelos outros presos, tocava “maravilhosamente” para um branco. Lester Young, o presidente, alijado de sua vida por não conseguir tocar mais como ele mesmo; Ben Webster, o solitário que gostava de ficar perto da água e, mesmo em temas suaves, deixava entrever “um urro”.
São retratos de músicos geniais que habitam o destino de homens comuns. Ou, quem sabe, o contrário.
Todo aquele jazz é dividido em duas partes. Encerrada a primeira, com a viagem de Duke e Carney e os perfis que a intercalam em várias paradas estratégicas, Geoff Dyer oferece ao leitor um curto ensaio, no qual atualiza o tema até os contemporâneos da geração ECM, chegando a Keith Jarrett. Usando agora elementos mais formais e menos literários, mostra que nesse registro também é muito bom. Mas fica faltando a hora do improviso.
JAZZ & CO.
De Vinicius de Moraes, organização de Eucanaã Ferraz
Editora Companhia das Letras, 152 páginas, R$ 58
TODO AQUELE JAZZ
De Geoff Dyer
Editora Companhia das Letras, 238 páginas, R$ 39,50
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