Severino Francisco
Estado de Minas: 27/07/2013
A peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, parece notícia extraída de uma folha da imprensa marrom, daquelas que, se espremidas, em vez de tinta, espirram sangue. Nelson estreou como repórter da editoria de polícia aos 13 anos, metido em um terninho elegante. A trama, em alta voltagem dramática, transita precisamente entre dois mundos (ou submundos) cujas entranhas Nelson conhecia bem: a imprensa sensacionalista e as delegacias de polícia.
O beijo no asfalto ganha agora primorosa edição artesanal de arte da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, sediada em Brasília, com gravuras de Darel Valença Lins, ilustrador das histórias de “A vida como ela é…”, publicadas no jornal Última Hora, e um dos mais importantes artistas gráficos brasileiros.
O drama é desencadeado por incidente insólito ocorrido na Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Um homem é atropelado pela lotação e o protagonista Arandyr, o primeiro a chegar, beija a vítima na boca. A cena foi testemunhada por Amado Ribeiro, cafajeste de carteirinha e repórter do jornal intitulado, irônica e provocadoramente, Última Hora. Como um Freud de Madureira, Nelson desce ao inconsciente suburbano para garimpar revelações explosivas.
Cada um apresenta a versão segundo o respectivo interesse, sem que a verdade seja inteiramente deslindada. Arandyr alega que beijou atendendo a pedido do atropelado antes de morrer. O repórter Amado Ribeiro e o delegado Cunha estabelecem um conluio mafioso para aumentar as vendas do jornal e obter promoção pessoal. Eles forjam a versão de que o beijo foi, na verdade, apenas um álibi de Arandyr para esconder o detalhe de que empurrou a vítima e praticou assassinato. Nesse brejo moral, ninguém se salva.
No entanto, Nelson é um poeta do palco: vemos as cenas se erguerem em carne e osso à frente de nossos olhos com extraordinário vigor. O dramaturgo carregou a pecha de pornógrafo, imoral e destruidor da família. Mas, na verdade, é precisamente o contrário de tudo isso. Nelson é um moralista. Usa o teatro como espaço para exorcizar demônios.
Em seu cálculo lúcido, é melhor cometer todas as aberrações no tablado do que na vida real. Por isso, o teatro não pode ser um bombom de licor, mas abcesso capaz de expurgar desejos ocultos. “Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros”, dizia o dramaturgo. Apesar da visão moral, Nelson não consegue disfarçar o fascínio de anjo pornográfico a espiar morbidez pelo olho da fechadura.
Cordel urbano O artista gráfico pernambucano Darel Valença Lins conviveu cotidianamente com Nelson Rodrigues no jornal Última Hora. Era ele quem ilustrava a coluna “A vida como ela é…”. O escritor sempre queria interferir na concepção do desenho. “Nelson considerava o que fazia uma espécie de literatura de cordel urbana”, conta Darel. “Ele queria que eu elaborasse algo muito descritivo no estilo das histórias em quadrinhos. Mas eu discordava que fosse cordel, podia ter uma interpretação visual.”
O dramaturgo replicava que era escritor de jornal e arrancava tudo da realidade mais prosaica: “Estou escrevendo ‘A vida como ela é…’ para o povão, Darel, sem burilar o texto e para criar um tipo de tensão. Os sapos nasceram para viver no charco!”, fulminava.
Darel explica a diferença entre a linguagem das histórias em quadrinhos, pretendida por Nelson, e a ilustração interpretativa e autoral que ele queria fazer. Diz que, se cada artista olhar a barca da cantareira, fará desenhos diferentes. “O bom desenhista tem caligrafia que vem de dentro dele. A história em quadrinhos é algo aprendido na escola, fica tudo igual e sem alma. O meu desenho tem a minha caligrafia”, compara.
Dessa longa convivência, ficou uma certeza: “Nelson era um homem com grande força de caráter. Tinha uma certa malandragem, mas com uma conduta fantástica”. Darel acredita que o amigo criou um novo gênero de literatura, nascido no bojo do jornalismo: “Daí surgiu em mim o desejo de chegar com a minha caligrafia para desenhar a tragédia do Nelson. Hoje, entendo-o melhor. Porém, ele jamais pode ser visto ou sentido como autor de história em quadrinhos”, avisa.
O BEIJO NO ASFALTO
l De Nelson Rodrigues
l Ilustrações de Darel Valença Lins
l Confraria dos Bibliófilos, 70 páginas
l Quem quiser se associar à confraria deve adquirir o livro (R$ 180) e se comprometer a comprar mais duas obras por ano. Informações: conbiblibr@yahoo.com.br
lançamentos
biografia
SANGUE E CHAMPANHE – A VIDA DE ROBERT CAPA
De Alex Kershaw
Record, 350 páginas, R$ 42,90
Com base em entrevistas com amigos e pessoas que conviveram com Robert Capa, além de arquivos secretos dos governos soviético e norte-americano, o repórter reconstitui a vida do fotojornalista, que cobriu cinco guerras e fundou a agência Magnum, referência mundial no meio. Aclamado pelas fotos do Dia D publicadas em 1944, Capa teve seu talento reconhecido também pelo trânsito no meio artístico.
LICOR DE DENTE-DE-LEÃO
De Ray Bradbury
Bertrand Brasil, 266 páginas, R$ 34
No verão de 1928, na cidadezinha de Green Town, interior dos EUA, Douglas Spaulding faz uma descoberta: ele está vivo. Aos 12 anos, ele depara com descobertas que vão marcar a passagem da infância para a adolescência. Descobre, por exemplo, que o licor de dente-de-leão é mais que a bebida que seu avô prepara todos os verões desde que ele e seu irmão Tom nasceram. A cada nova descoberta, Douglas cresce um pouco mais.
O CARRASCO DE HITLER – A VIDA DE REINHARD HEYDRICH
De Robert Gerwarth
Cultrix, 456 páginas, R$ 60
O autor mostra que, mais do que executor ou carrasco, Heydrich foi responsável por formular políticas adotadas pelo governo nazista, em particular nos territórios da recém-invadida Tchecoslováquia. Heydrich foi responsável por encontrar e implantar uma “solução final para a questão judaica” juntamente com seu superior, Heinrich Himmler, que resultou no assassinato sistemático e industrializado de judeus na Europa a partir de 1942.
A PRISÃO DA FÉ
De Lawrence Wright
Companhia das Letras, 600 páginas, R$ 54
Das religiões surgidas nas últimas décadas, poucas angariaram a riqueza e o poder da Igreja da Cientologia. Para trazer à tona os bastidores do culto que atraiu John Travolta e Tom Cruise, Lawrence Wright fez mais de 200 entrevistas com cientologistas e ex-membros da igreja. No centro do livro estão os dois pilares da igreja: o fundador, o escritor de ficção científica L. Ron Hubbard, e David Miscavige, seu violento sucessor.
ISSO É ARTE?
De Will Gompertz
Zahar, 444 páginas, R$ 59,90
O livro faz uma viagem por 150 anos de arte moderna, do impressionismo aos dias de hoje. Editor de artes da BBC, o autor conta a história dos movimentos, dos artistas e das obras que ajudaram a criar e definir o mundo moderno: dos nenúfares de Monet aos girassóis de Van Gogh; das latas de sopa de Andy Warhol ao tubarão em conserva de Damien Hirst.
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