Estado de Minas - 27/07/2013
Depois
da política, a religião. A sociedade brasileira parece ter, durante
toda a sua existência, balançado entre esses dois polos – e nem sempre
de forma equilibrada. A mistura de negócios do mundo com compromissos
com a fé gerou descaminhos e injustiças que se tornaram matriz de muita
infelicidade ao longo da nossa história. No entanto, parece que o par
política e religião tem força para atrair várias oposições das quais
somos feitos: ciência e dogma; fé e razão; alma e corpo; o céu e a
terra.
A visita do papa Francisco ao Brasil, semanas depois da
onda de mobilização que tomou conta do país, parecia, até pelo perfil
dos personagens, ato distinto da afirmação de duas formas de ver o
mundo. Os jovens que foram às ruas protestar não se pareciam com os que
se prepararam para as celebrações da fé católica. E não se tratava
apenas da forma e da linguagem, mas de uma distinção mais profunda. Além
disso, os temas eram outros e a forma de organização diferente.
Houve,
claro, momentos de intercessão, sobretudo na hora de programar a
segurança: o que parecia dar feição única aos movimentos era apenas o
fato de se tratar, nos dois casos, de multidões reunidas por objetivos
comuns. No primeiro caso, a massa conduziu o sentido; no segundo evento,
deu-se o contrário. O movimento das ruas tinha dimensão política, ainda
quando negava esse fato; a reunião religiosa, que sempre se apresentou
como explicitamente ideológica (não existe instituição mais política que
a Igreja Católica), não se traduzia na prática como tal.
A
movimentação religiosa foi antecedida de muitas análises sobre a crise
da religiosidade do brasileiro, sobre a perda da importância
quantitativa do catolicismo no país, pelos diagnósticos sobre a mudança
do mapa da fé no país. Além disso, ganharam destaque temas importantes
ligados ao comportamento, à liberdade e à tolerância, ao lado de certo
esquentamento do debate teológico, sempre tão rico no país, e que vinha
sendo deixado de lado em nome de consensos impostos autoritariamente.
Não
deixou de ser curiosa a forma como a jornada católica foi tratada no
âmbito dos negócios: um evento entre outros. Foram muitas as reportagens
sobre mobilidade, investimentos, negócios, hotelaria etc., tendo como
elemento de comparação grandes torneios esportivos e festejos laicos, da
polêmica Copa das Confederações ao réveillon de Copacabana. Em fé,
esportes, festa e política, parece que a quantidade vem dando as cartas.
Por fim, a atenção aos temas religiosos traz ainda para o
debate os recentes fatos lamentáveis da onda conservadora evangélica
neopentecostal, com episódios como o projeto da “cura gay” e a
diminuição da importância da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados, tornada moeda de troca entre partidos de menor expressão. A
moralização da questão política, além de retrocesso, é um perigo ao qual
a sociedade precisa estar alerta, sob o risco de viabilizar outros
projetos obscurantistas em moral e reacionários em termos sociais.
Se
a bancada ruralista, por exemplo, tem dificultado o encaminhamento de
soluções dos problemas fundiários e da política de produção de alimentos
no Brasil com sua atuação cerrada em comissões de seu interesse, a
expressiva bancada evangélica, ao partir da indistinção republicana
entre interesses de fé e de Estado, pode encaminhar propostas que
atentem ainda mais gravemente contra a sociedade. E fará isso a partir
da anulação de preceitos ligados aos direitos humanos e à dignidade da
pessoa, sem falar nos entraves de ordem científica no que tange às
pesquisas no campo da saúde humana.
Deus não é candidato Religião
é um assunto importante. Há muitos equívocos em torno do tema,
sobretudo no que diz respeito a questões éticas. Durante muito tempo
houve identificação entre crença e moralidade, como se apenas quem
tivesse fé na existência de Deus fosse digno de consideração. Todos se
lembram da pergunta feita em forma de pegadinha aos candidatos de
esquerda em várias campanhas eleitorais: “Você acredita em Deus?”. Era
uma forma de desqualificar o pretendente ao cargo público, como se ateus
e agnósticos fossem incapazes de habitar o terreno da moralidade.
No
entanto, quando se pensava que essa bobagem havia perdido sentido, a
pergunta foi sendo modificada para temas de ordem moral e familiar (esse
bastião da resistência conservadora), principalmente sobre o aborto.
Trata-se de um expediente sutil para desqualificar o debate da ordem da
política, dos direitos da mulher e da saúde pública, desviando-o para o
campo da religião.
Em outras palavras, foi a forma de permitir
que se continuasse perguntando aos candidatos se acreditavam em Deus e
de condená-los por meio de subterfúgios. A questão do casamento gay e
outras referentes ao comportamento são subsidiárias da mesma estratégia
desonesta.
O crescimento do ateísmo e a defesa da racionalidade e
da ciência em temas públicos geraram outro cisma. Desta vez, em direção
oposta. A religião passou a ser vista apenas como ideologia
preconceituosa e não como visão de mundo. O que de melhor a teologia
legou à humanidade, o senso de mistério e a busca da transcendência,
acabou jogado fora com o lado obscurantista de algumas religiões em sua
expressão fundamentalista. Para ser honesto, os riscos de incompreensão e
cerceamento do diálogo são ameaças que vêm dos dois lados. O ateísmo
também corre o risco do fundamentalismo no que ele tem de pior: a
incapacidade em ouvir o outro.
Habermas É possível conciliar fé e
razão? O filósofo Jürgen Habermas acredita que sim. Em Fé e razão
(Editora Edusp), que acaba de ser lançado no Brasil, ele defende a
relação dialógica da filosofia com as tradições religiosas e a releitura
sobre a posição do pensamento pós-metafísico entre ciências e religião.
Ou seja, ainda que a separação entre os dois universos seja radical,
sobretudo na inauguração da modernidade e na construção do campo
político, as doutrinas religiosas fazem parte da genealogia da razão
como a concebemos, que se nutre tanto do manancial grego (filosofia)
quanto das grandes crenças do que Jaspers chamou de era axial (religiões
monoteístas e espiritualidade oriental). Há tensão produtiva entre fé
religiosa e saber filosófico.
Bertrand Russell discordaria. O
filósofo inglês, no ensaio “O mal que os homens bons fazem”, lembra que
nossa moralidade é feita de superstição e racionalismo. Para ele, a
defesa da moral convencional é sempre restritiva, uma série de “não
deverás” que acaba por compor um código de conduta mesquinho e
repressivo, onde deveria comandar a liberdade. Os bonzinhos são, além de
chatos, injustos quando se trata de grandes questões. Pragmático,
Russell defendia outra escala de valores, que permitisse aos homens
crescer e buscar a felicidade para todos, ainda que em franco
desrespeito às normas. Estas, como sabemos, muitas vezes dão forma a
interesses de quem tem mais poder e dinheiro.
A bondade e a
maldade, para o filósofo, precisam ser revistas. É fácil ser piedoso, ir
à missa, não cometer desvios morais, ainda que à custa de hipocrisia. O
difícil não é controlar os desejos, mas querer a felicidade para todos e
combater as injustiças. As palavras de Russel, escritas há mais de 70
anos, parecem endereçadas aos nossos “bons” homens públicos, religiosos e
empresários de sucesso (às vezes as três encarnações na mesma pessoa):
“Um homem deveria ser considerado bom se fosse feliz, expansivo,
generoso e alegre quando os outros estivessem felizes; se fosse assim,
uns poucos pecadilhos seriam considerados de importância menor. No
entanto, um homem que adquire fortuna por meio de crueldade e exploração
deveria ser visto como hoje vemos o chamado homem imoral; e assim
deveria ser julgado, mesmo que frequentasse igreja com regularidade e
desse uma parte de seus ganhos ilícitos com propósitos públicos”.
Ser
ético é compromisso fundamental de quem não tem fé. Sem Deus, só assim é
possível pensar uma vida em comum e um projeto democrático de
aprimoramento social. Nessas horas, a política é sempre melhor do que a
religião. Essa poderia ser a lição que uniria as duas faixas de jovens
que não se encontraram nas ruas por umas poucas semanas de diferença.
Uma teria muito o que aprender com a outra.
Aliás, achar que se pode aprender é também uma forma de diferenciar as boas das más pessoas.
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