quarta-feira, 24 de julho de 2013

Janaína Conceição Paschoal; Ligia Bahia e Mário Scheffer [Tendências/Debates]

folha de são paulo
JANAÍNA CONCEIÇÃO PASCHOAL
Um fato: vários olhares
Mais que qualquer outra diferença, a religiosa constitui pilar da democracia. Só é democrático quem é capaz de aceitar a escolha dos outros
Em "Confissões", santo Agostinho, ao relatar sua conversão, conta que ouviu a voz de uma criança mandando-o ler uma passagem de livro (para alguns, a Bíblia).
Sem conseguir identificar de onde viria a voz, Agostinho obedeceu, mas não conseguiu chegar ao final. Segundo consta, a conversão de Agostinho passou pelo atento estudo das lições de Paulo de Tarso, Saulo, antes da sua própria.
Após o episódio, santo Agostinho abandona a vida que julgava pecadora e abraça o caminho que sua mãe, santa Mônica, para ele sonhou. O fenômeno relatado pelo filósofo pode ser interpretado de diversas formas. Aos olhos católicos, tratou-se de uma revelação, de um milagre, do divisor de águas entre o homem e o santo.
Sob a perspectiva evangélica tradicional, poder-se-ia interpretar a voz da criança como manifestação do Espírito Santo. Para os neopentecostais, seria possível até pensar em influência maligna. Para o espírita, Agostinho teria vivenciado uma experiência mediúnica. Por conseguinte, a voz infantil nada mais seria que a orientação de um mentor, ou espírito protetor, contato inerente à natureza humana.
Um psicólogo poderia vislumbrar sinal de conflito não solucionado com a mãe. E nada impediria que um psiquiatra viesse a catalogar a ocorrência como sintoma de patologia mental. Quando ouvira a voz, Agostinho estava aos prantos, em quadro muitas vezes descrito como de depressão.
Um ateu ou agnóstico, poderia tomar o relato agostiniano como alegoria, espécie de estratégia, consciente ou inconsciente, para conferir maior autoridade a seus escritos. E outras tantas leituras seriam passíveis de arriscar.
Creio que exista a verdade sobre o que ocorrera com santo Agostinho. No entanto, tomando por certo que nem todas as causas e efeitos estão ao alcance do homem, bem como que a ciência ainda tem muito para desvendar, o que importa em um Estado laico é aceitar que cada uma das explicações é real para aqueles que a formulam.
A laicidade não guarda relação com o materialismo. Laicidade significa permitir e garantir o convívio das mais diversas e opostas exegeses para idênticos fatos.
Tolerar, à luz dos ensinamentos de John Locke, implica suportar aquilo que se odeia. Em uma vertente inovadora, pode-se conceber tolerar como o ato de olhar o outro como alguém que já descobriu o que ainda não conseguimos entender.
Esse princípio dá ensejo ao respeito, que não precisa nem deve ser imposto. Uma religião universal constitui meta totalitária, como também resta totalitário o cenário de completa irreligião. Fernando Henrique Cardoso, em seu "Xadrez Internacional", fala sobre a perplexidade de Tocqueville diante da capacidade americana de conciliar espírito religioso com espírito de liberdade.
No Brasil, essa convivência é ainda mais necessária, pois as divergências são muito acentuadas. Assim, deve-se conferir espaço para que cada um professe sua fé, com respectivos dogmas, esforçando-se para enxergar no outro um sujeito digno de também professar a própria fé.
Mais que qualquer outra diferença, a religiosa constitui pilar da democracia. A religião e a não religião, em regra, são escolha. E só é verdadeiramente democrático quem é capaz de aceitar a escolha dos outros.

LÍGIA BAHIA E MÁRIO SCHEFFER
Sinistro na ANS
Desde sua criação, a agência foi capturada pelo mercado que ela deveria fiscalizar. Medidas para coibir conflito de interesses sempre foram contestadas
No jargão dos planos de saúde, sinistro é a perda financeira a cada demanda de um cliente doente. Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi tomada pelo sinistro no sentido popular do termo --ou seja, aquilo que é pernicioso.
Dois ex-executivos de planos de saúde --um serviu à maior operadora do país e outro, à empresa líder no Nordeste-- acabam de ser nomeados diretores da ANS.
Desde sua criação, há 13 anos, a agência foi capturada pelo mercado que ela deveria fiscalizar. As medidas sugeridas para coibir o conflito de interesses na ANS --frise-se, um órgão público sustentado com recursos públicos-- sempre foram contestadas sob o argumento de que tais pessoas "entendem do setor".
Assim, a agência instalou em suas entranhas uma porta giratória, engrenagem que destina cargos a ex-funcionários de operadoras que depois retornam ao setor privado.
A atuação frouxa da ANS, baseada no lucro máximo e na responsabilidade mínima das operadoras, tem a ver com essa contaminação. Impunes e protegidos pela fiscalização leniente, os planos de saúde ao fim restringem atendimentos e entregam emergências lotadas e filas de espera para consultas, exames e cirurgias.
As empresas deixaram de vender planos individuais, pois têm o aval da ANS para comercializar planos coletivos a partir de duas pessoas, com imposição de reajustes abusivos e rescisão unilateral de contrato sempre que os usuários passam a ter problemas de saúde dispendiosos. Sob o olhar complacente da ANS, dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento quando seus clientes são atendidos em hospitais públicos.
Os planos de saúde doam recursos para candidatos em tempo de eleição que, depois de eleitos, devolvem a mão amiga com favores e cargos. Há coincidências que merecem explicação.
Em 2010, as operadoras ajudaram na eleição de 38 deputados federais, três senadores, além de quatro governadores e da própria presidente da República. Da empresa que doou legalmente R$ 1 milhão para a campanha de Dilma Rousseff, saiu o nome que presidiu a ANS até 2012. O plano de saúde que doou R$ 100 mil à campanha de um aliado --o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral-- emplacou um diretor da agência que, aliás, acaba de ser reconduzido ao cargo.
Em 1997, o texto do que viria a ser a lei nº 9.656/98, que regula o setor, foi praticamente escrito por lobistas dos planos. Em 2003, na CPI dos Planos de Saúde, as empresas impediram investigações. Em 2011, um plano de saúde cedeu jatinho para o então presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), em viagem particular.
Quase mil empresas de planos de saúde que atendem 48 milhões de brasileiros faturaram R$ 93 bilhões em 2012. Com tal poder econômico, barram propostas de ampliação de coberturas, fecham contratos com ministérios e estatais para venda de planos ao funcionalismo público, definem leis que lhes garantem isenções tributárias. E se beneficiam da "dupla porta" (o atendimento diferenciado de seus conveniados em hospitais do SUS) e da renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas, que abatem do Imposto de Renda os gastos com planos privados.
Agora as operadoras bateram às portas do governo federal, pedindo mais subsídios públicos em troca da ampliação da oferta de planos populares de baixo preço --mas cobertura pífia.
No momento em que os brasileiros foram às ruas protestar contra a precariedade dos serviços essenciais, num rasgo de improviso os problemas da saúde foram reduzidos à falta de médicos. O que falta é dotar o SUS de mais recursos, aplicar a ficha limpa na ocupação de cargos e eliminar a promiscuidade entre interesses públicos e privados na saúde, chaga renitente no país.

    Nenhum comentário:

    Postar um comentário