Bate, coração cadáver
Aprecio zumbis desde criança, como qualquer homem de bem - desde que não corram, pois tudo tem limite. Do primeiro contato, nas revistas de terror das editoras Vecchi e D'Arte nos anos oitenta, às elucubrações acerca dos p-zombies (os "zumbis filosóficos") de David Chalmers e companhia, sempre guardei cantinhos na cachola e no coração para os mortos-vivos.
Ainda assim não tenho como negar que é um tema que ultrapassou faz tempo o ponto de saturação na cultura pop. Estão por todos os lados desde a década passada, e os games não tinham como ficar de fora.
Não basta fazer um jogo sobre zumbis, como o bonitinho mas medíocre "Dead Island": eles também aparecem em expansões e DLCs, muitas vezes gratuitamente. Não me surpreenderia se a Nintendo resolvesse aparecer com um "Zombie Mario" - que, considerando a situação atual do console, até que não ficaria mal no Wii U (do qual, não vamos esquecer, um dos títulos de lançamento foi justamente o meia-boca "ZombiU").
É um tema tão saturado que até mesmo apontar essa saturação também não é exatamente nada de novo. Se estou fazendo isso, é porque me parece que os zumbis nos games deram uma volta completa, e como resultado temos visto o surgimento de títulos que - apesar dos zumbis - valem uma conferida.
O primeiro é o adventure episódico "The Walking Dead" (Windows, Mac, PS3 e iOS, com - ufa - uma versão para Vita prometida para o mês que vem). Desenvolvido pela Telltale, que até então se notabilizava por lançar títulos invariavelmente quase bons, o game tem uma primeira temporada irretocável. Em jogabilidade e narrativa, ajuda a trazer para o século XXI um dos gêneros mais queridos da história dos games (todos têm o direito de discordar, mas seguirei evitando até dar bom dia para quem não respeita os clássicos point-and-click da LucasArts, como "The Secret of Monkey Island", "Day of the Tentacle" e "Grim Fandango").
O engajamento do jogador com os dramas dos personagens é genuíno, reforçado pela mecânica sustentada em dilemas realmente angustiantes. Quem jogou dificilmente esquecerá a relação que se forma entre a dupla de protagonistas, o presidiário Lee e a garotinha Clementine. A direção de arte é acertada, criando um visual de história em quadrinhos que nunca escorrega para o cartunesco.
Com ótimo domínio de ritmo, exceto por uma breve escorregada no meio da história, o roteiro é vastamente superior ao da série de tevê e bem menos cansativo que o novelão em que transformou a HQ que deu origem a tudo. O recém-lançado episódio extra "400 Days", uma espécie de trailer da segunda temporada, indica que a série vai seguir pelo caminho da construção cuidadosa de personagens e climas. Mal posso esperar.
Na outra ponta temos o game independente "The Organ Trail: Director's Cut" (R$ 8,50 no Steam, para Windows, Mac e Linux; há também versões para Android e iOS), versão (muito) ampliada de um jogo gratuito em Flash. Financiado pelo site de crowdfunding Kickstarter, "The Organ Trail" é uma paródia de "The Oregon Trail", um dos primeiros games educativos, velho conhecido de qualquer um que tenha sido micreiro nos anos 1970/1980.
Em termos de apresentação é fiel às raízes 8-bit, tanto em gráficos quanto em efeitos sonoros. Como no original, o objetivo é levar um grupo (ou o que restar dele) de uma costa a outra dos EUA. Desta vez o objetivo não é desbravar o Oeste, mas encontrar refúgio do apocalipse zumbi (mas, claro, ainda é possível morrer de disenteria). Além do fator nostálgico, é um jogo realmente engraçado e as mecânicas da coleção de minigames são, na maior parte, viciantes. Vai lá e joga.
Daniel Pellizzari, escritor e tradutor literário, escreve sobre games às segundas, mensalmente, no caderno 'Tec', e às quartas, mensalmente, no site.
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