domingo, 21 de julho de 2013

O homem que falava português [Paulo Rónai] - Raquel Cozer

folha de são paulo
PERFIL
O homem que falava português
O húngaro Paulo Rónai se deleitou com o "idioma de passarinhos"
RESUMO A obra do crítico, tradutor e professor Paulo Rónai (1907-1992) vem sendo redescoberta desde que, em 2010, a agente Lúcia Riff assumiu seu espólio. "Como Aprendi o Português..." e "Mar de Histórias" são alguns dos títulos que voltam às livrarias, mas família ainda não achou instituição disposta a adquirir sua biblioteca.
RAQUEL COZER

PAULO RÓNAI TINHA 30 anos e já sabia latim, grego, italiano, francês e espanhol quando descobriu o português. À primeira audição (e única, por muito tempo, já que o português nunca esteve exatamente em voga em Budapeste), a língua lhe pareceu "alegre e doce como um idioma de passarinhos". Entre tantos vernáculos neolatinos, virou o xodó.
No ano seguinte, 1938, o jovem intelectual publicou suas primeiras traduções de poetas brasileiros para o húngaro. Um biênio transcorreu até, numa temporada em Portugal, ele enfim travar contato diário com o português. E descobrir que não entendia "patavina".
Por sorte, o português cuja sonoridade ele lembrava com apreço não só existia como era falado no Brasil, destino final da viagem que lhe rendera a escala em Lisboa.
"O Brasil recebia-me com uma linguagem clara, sem mistérios. Ainda não desembarcara e já não perdia nenhuma das palavras do carregador, que, em compensação, perdeu uma das minhas malas", relata Rónai (1907-1992) em "Como Aprendi o Português e Outras Aventuras" *[Casa da Palavra, 264 págs., R$ 34]*, cuja caprichada reedição engrossa uma série de lançamentos ligados à sua atividade de tradutor e ensaísta.
A vinda ao Brasil representara uma espécie de casamento forçado com o idioma que o encantara --em 1940, na Segunda Guerra, o autor, judeu, chegou a passar seis meses num campo de trabalhos forçados em Budapeste.
Mas o enlace não poderia ter resultado mais harmônico. Se Rónai (pronuncia-se "rônói") deixou Budapeste com um passaporte "não válido para retorno", encontrou aqui, aos 33, um país de braços abertos. Seu visto foi expedido em 1940, após o embaixador do Brasil lhe enviar carta garantindo condições para estudar no Rio.
Outra missiva chegara antes, em 1939, assinada pelo presidente Getúlio Vargas, em agradecimento pelo recebimento de "Brazilia Üzen" (mensagem do Brasil), publicado no Leste Europeu com traduções de Rónai. "Um serviço digno de todo o louvor", dizia o texto.
A antologia montada pelo húngaro não era módica. Sem nunca ter colocado os pés no Brasil, ele reunira nomes em plena atividade, como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo e Manuel Bandeira.
"Era algo espantoso. Não havia nos anos 1930 grandes antologias de brasileiros em atividade. Ninguém sabia que jovens dariam certo, Drummond ainda não era Drummond, e ele imediatamente sacou quem importava", diz o poeta e tradutor Nelson Ascher, autor de ensaios sobre a contribuição de Rónai à literatura brasileira.
Foi um impulso robusto, que inclui desde a elogiada organização de "A Comédia Humana", de Honoré de Balzac, cuja reedição a Globo começou a publicar no fim do ano passado, até a tradução e apresentação ao país de clássicos como "Os Meninos da Rua Paulo" (Cosac Naify), de Ferenc Molnár.
MUSA Paulo Rónai já era reconhecido na Hungria quando desembarcou no Brasil, como mostra Zsuzsanna Filomena Spiry na dissertação de mestrado "Paulo Rónai, um Brasileiro Made in Hungary", defendida em 2009 na USP.
"A obra dele é muito maior do que se enxerga aqui. Ele trouxe uma tradição de crítica literária de um país que valorizava imensamente essa área", diz a pesquisadora, agora doutoranda em Rónai.
A minuciosa pesquisa inclui um achado: um poema de 1929 no qual Rónai, então um aspirante a poeta de 22 anos, reconhecia que a musa o abandonara. A verdadeira inspiração, ele dizia, só o visitava quando o escritor se dedicava aos ensaios. Autocrítica incomum para um jovem com ambições literárias.
As oportunidades como tradutor não lhe caíram no colo. Após dois anos estudando em Paris, de 1929 a 1931, voltou para uma Hungria em crise. Colaborou com revistas literárias, deu aulas, mas por um período precisou fazer bicos em tradução comercial e técnica.
"Os assuntos variavam da descrição de patentes a certidões de casamento, bulas de remédio [...]. Parte desse trabalho era-me pedida por um escritório de traduções, outra por tradutores juramentados, que sublocavam tarefas a ghost-translators' necessitados e exploráveis", descreve Rónai em *"A Tradução Vivida" [José Olympio, 256 págs., R$ 36]*, volume que reúne conferências sobre o ofício, reeditado no ano passado ao lado de "Escola de Tradutores".
Mas a atuação como professor e em revistas como a "Nouvelle Revue de Hongrie" lhe garantiu estima. "O círculo de Rónai era central na Hungria. Eram os Antonios Candidos e Haroldos de Campos da geração dele", compara Ascher.
Chegando ao Brasil, o húngaro logo travou amizades com autores como Drummond e Cecília. Ficou próximo também de João Guimarães Rosa, de quem Antonio Candido e ele resenharam no mesmo dia, 11 de julho de 1946, "Sagarana" --o primeiro para o "Diário de São Paulo", com foco em aspectos sociais, o segundo para o "Diário de Notícias", no Rio, partindo de critérios filológicos e literários.
O amigo de toda a vida foi Aurélio Buarque de Holanda. A parceria gerou uma das antologias de contos mundiais mais ambiciosas de que se tem notícia, "Mar de Histórias", com dez tomos ao longo de 45 anos, e que será reeditada pela Nova Fronteira neste semestre.
"Aurélio traduziria os textos escritos em francês e castelhano, eu os escritos em grego, latim, inglês, italiano, alemão, russo e húngaro; além disso, ele faria a revisão de todas as traduções que não lhe coubessem", conta o autor de "A Tradução Vivida". A revisão era necessária porque Rónai vertia para idioma que não era o seu de origem, como tradutores costumam fazer.
FOFO "No geral, ele era desligado, mas era bonitinho. Era tão perfeito em tudo. Eu o achava um fofo", diz a viúva, Nora Rónai, 89, professora de arquitetura aposentada da UFRJ e campeã de natação na faixa dos 85 aos 89 anos.
Nora era o braço forte da família, segundo a filha mais nova, a flautista Laura, 57, professora da UniRio --a outra é a jornalista Cora Rónai, 59. "Mamãe era prática, papai ficava mergulhado nas leituras dele. Ele não gastava nada, não tomava uísque importado, vestia qualquer roupa", lembra.
O centenário de nascimento de Rónai, em 2007, passou em branco, mas desde 2012, quando se completaram 20 anos de sua morte, sua obra começa a aparecer. Não apenas pela efeméride.
Após um período sob os cuidados do agente Alexandre Teixeira, responsável pelo espólio de Cecília Meireles e Manuel Bandeira, a obra do tradutor foi transferida para uma das principais agentes do país, Lúcia Riff, que recebeu da família a orientação de fazer o nome dele voltar a aparecer.
Foi uma coincidência feliz que a troca de guarda tenha acontecido quando Ana Cecilia Impellizieri, editora da Casa da Palavra e estudiosa de Rónai, pensou em editá-lo. "Ele precisa ser reconhecido na totalidade de sua contribuição para o país, além do notável trabalho como tradutor, pelo qual é mais celebrado hoje."
Além de "Como Aprendi o Português...", a Casa da Palavra editará "Encontros com o Brasil", "Não Perca o Seu Latim" e "Contos Húngaros". Outra reedição prevista para breve é a de "Pois É" (José Olympio). "Ninguém na família vive dos direitos autorais de papai, e isso tem vantagens e desvantagens", diz Laura. Uma vantagem é que as herdeiras não colocam empecilhos à circulação da obra. No outro extremo, não têm condições de se dedicar exclusivamente ao acervo.
Nos últimos anos, a família vem buscando instituição disposta a receber a biblioteca que ele organizou, meticulosamente, no sítio Pois É, em Nova Friburgo (RJ). Ainda não apareceu quem tope pagar em torno de R$ 800 mil, segundo avaliação preliminar.
"Recebi propostas de doações, mas não acho justo com a família nem com a memória de papai, que pagou por aqueles livros. Está na hora de o país reconhecer um pouco o que ele deu ao Brasil."
Zsuzanna Spiry foi quem levantou os 7.843 livros da biblioteca, que inclui uma brasiliana, com cerca de 4.000 volumes, dos quais 70% estão dedicados a Rónai pelos autores, e um setor de literatura universal. Além disso, há a produção do próprio autor, como títulos que prefaciou (mais de 60) e artigos de jornais (mais de 400).
"Ele tinha um senso organizacional apuradíssimo. Encontrei várias pastas de recortes, ordenados por ordem cronológica, com uma folha índice no começo, feita a mão, com a indicação de cada recorte contido na pasta, data, título e respectivo jornal", escreve a pesquisadora na dissertação.
Isso no que diz respeito a trabalho conhecido. Não se sabe, por exemplo, a extensão do esforço nunca creditado a Rónai na revisão de "Em Busca do Tempo Perdido" (Globo), de Marcel Proust. Mas foi em outra ocasião, ao omitir crédito e notas de "A Comédia Humana", que a Globo tirou o homem do sério.
"O advogado disse que ganharíamos um processo. Papai acabou fazendo um acordo. Disse que, se saísse outra edição, com o nome dele, não processava. Papai era um otário", acha graça Laura.
Era também "fofo". Em certa ocasião, ela lembra, bravo por vê-la estudar pouco, ele lhe deixou um pito por bilhete. Na forma de um poema. "Respondi também por poema que estudava, sim."
Embora tenha vaticinado cedo o abandono da musa, Rónai nunca deixou de rascunhar versos, de brincadeira, para amigos. Em 1970, presenteou seu cunhado Américo, bagunceiro convicto, com uma pasta para documentos acompanhada dos seguintes versos: "Arquivados, classificados,/ Em bom lugar conservados,/ Todos na pasta competente,/ Para serem encontrados facilmente."
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'No geral, ele era desligado, mas era bonitinho. Era tão perfeito em tudo. Eu o achava um fofo', diz a viúva, Nora Rónai, campeã de natação na faixa dos 85 aos 89
Sem nunca ter colocado os pés no Brasil, ele reunira nomes em plena atividade, como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo e Bandeira

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