domingo, 21 de julho de 2013

Encomendas para o futuro - JOCA REINERS TERRON

folha de são paulo
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
São Paulo, 1995


PRIMEIRO, CONHECI VALÊNCIO Xavier (1933-2008) por meio de "O Mez da Grippe", a obra-prima dele que carreguei em cópia xerox para todos os lados durante a faculdade, completamente transtornado.
Da segunda vez, conheci Valêncio Xavier por telefone, se é que é possível afirmar isso de alguém; creio que o mais correto seria dizer que fui apresentado à voz rouca e titubeante do escritor paulista em 1994, quando arrisquei ligar para um número arranjado na lista telefônica de Curitiba, cidade onde ele morava e para a qual eu viajara não fazia uma semana.
E afinal, conheci-o pessoalmente em São Paulo, em 1995; pessoa que, aliás, reunia toda a estranheza anunciada pela gagueira telefônica, coroada por uns olhos azuis irrequietos e branca cabeleira ouriçada de russo perdido nos trópicos. Em sua desarrumação, Valêncio parecia sempre ter sido transportado pelo vento. Naquela época ainda fumava, e também era possível imaginar que recém-pousara trazido pela fumaça do próprio cigarro.
Então eu tinha 27 anos, e ele, 62. Não que houvesse diferença de idades, ou talvez sim: eu era o ancião, e ele, uma criança de imaginação febril --Valêncio Xavier completaria 80 anos neste 2013.
A partir daí, Valêncio me acordaria o mais cedo possível em muitas ocasiões, ligando da "Gazeta do Povo", onde cumpria expediente. Sem cerimônia, gostava de fazer seus telefonemas por volta das 6h30, horário em que a Redação estava vazia. Para ele, não fazia a menor diferença se eu tinha ou não um bebê de poucos meses em casa ("Já que não anda dormindo mesmo", disse uma vez).
Os motivos eram variados: comprar um raro dicionário etimológico que eu encontrara no lixo, vangloriar-se, relatar histórias que andava escrevendo, anunciar-- Valêncio sempre anunciava algo, avisar era pouco para ele-- sua vinda a São Paulo.
Nessas ocasiões, ele me chamava na portaria da editora onde trabalhei alguns anos, na rua Conselheiro Nébias. Hospedava-se na vizinhança, no apartamento de seu sobrinho, o pintor Sergio Niculitcheff. Tomávamos café no Aldino's, um bar na esquina da Helvétia com a Barão de Limeira, e dali caminhávamos até a extinta livraria Duas Cidades, na Bento Freitas.
Por aquela altura eu planejava criar minha minúscula editora, a Ciência do Acidente, e queria estreá-la com um livro de Valêncio Xavier. Então os telefonemas, a cada dia mais madrugadores, passaram a tratar quase exclusivamente disso, da edição de seus livros.
O primeiro a sair foi "Meu 7º Dia - Uma Novella-rébus", em 1999, e pretendíamos publicar outro em seguida, "O Corpo do Sonho", que ainda permanece inédito. O livro, como toda sua obra, deveria ter ilustrações. Só que desta vez, Valêncio --que recuperava imagens de filmes mudos e antigos anúncios publicitários -- insistia que eu deveria produzi-las.
Como de costume, ele entregou o texto acompanhado de esboços a fim de me orientar. Os rabiscos (um deles ilustra esta recordação) eram excelentes, e tentei convencê-lo a fazê-los ele próprio, o que recusou. Então Valêncio teve Alzheimer, minha aventura editorial acidentou-se, e o livro não saiu.
Um dia, soube que ele encomendara os mesmos desenhos ao Sergio Niculitcheff. Foi o próprio Sergio quem me contou. Anos depois, recebi um telefonema inesperado de Curitiba, do ilustrador Ricardo Humberto, relatando que Valêncio também lhe pedira idênticos desenhos para ilustrar "O Corpo do Sonho". Fico imaginando a quantos desenhistas ele solicitou as tais ilustrações, e se as repetidas encomendas se deviam ao esquecimento causado pela doença ou à sua proverbial desconfiança com editores.
Porém, logo lembrei o sorriso maquiavélico de Valêncio e desconfiei que não, ele apenas devia estar sendo prevenido --se um furasse, outro não falharia. A verdade parece ser que todos furamos, e "O Corpo do Sonho" continua inédito e à espera de ilustrador.

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