A escritora carioca Rita Moutinho mostra
domínio técnico e estilo próprio ao misturar poesia e psicanálise em seu
novo livro, Psicolirismo da terapia cotidiana
André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 03/08/2013
Com o título inspirado em uma obra de Freud
(Psicopatologia da vida cotidiana), Rita Moutinho acaba de lançar o
livro Psicolirismo da terapia cotidiana. Essa poeta carioca promove a
transformação da própria psicanálise em poesia. Com amplos gestos de
coragem e generosidade, a escritora busca, por meio de sua poética e de
um estilo marcante, usar a literatura como “arma” para alcançar uma
espécie de “cura”.
O livro é dividido em quatro partes, que
representam os diferentes estágios de uma terapia: “Tempo nublado”,
“Tempo instável”, “Tempo parcialmente nublado, passando a límpido” e
“Céu quase limpo com clarões no horizonte”.
Rita Moutinho viaja
com segurança pelos versos livres até os sonetos, quando explora, como
quem brinca perto do lúdico, todo o potencial do verso, da palavra, que
também é signo, que é também chama, fogo, paixão. Ela explora os
abismos, que remetem ao grande medo, que remetem à perdição e ao
desamparo. Nesse sentido, duas “ferramentas” se juntam, a psicanálise e a
poesia, para misturar todos os elementos, vida e morte, os claros e
principalmente os escuros de uma alma para formar o todo contínuo,
entrelaçado de coisas da vida e do cotidiano, que molda e transforma o
fazer poético – e a vida – de Rita Moutinho.
Rita tem, ou
construiu, relação muito próxima com a palavra, como demonstra neste
verso, que é pura música: “Eu tentei costurar diversos panos/ de
texturas e cores diferentes,/ mas tinha como agulhas alfinetes/ e não se
davam pontos, mas espantos./ ‘Costurei’ sedas, lãs e musselinas,/ quis
unir algodão, chintz, cetim,/ coser fustão com um fino organdi,/ unir
chita, tergal e casimira./ Eu queria coser um quente manto/ que mandasse
ao desterro dores frias/ e queria ter colcha colorida/ pra cobrir
sonhos maus cheios de danos./ Mas só tinha alfinete pra costura/ e ao
invés de tecer, fiz atadura”.
A escolha das palavras é um
processo de fundamental importância para a poesia. Em vez de curativo, a
poeta forja atadura, que indica e ressignifica dores e danos. Forma e
conteúdo, fluxo e contenção rumo a um sentido amplo. Sua poesia sugere
clarezas, claridades. A arte não serve para nada: não há maior mentira.
Rita mostra que a poesia serve, sim, serve muito para a construção de
alicerces, a poesia serve de bálsamo, como sempre soube Mario Quintana:
“Quem faz um poema abre uma janela./ Respira, tu que está numa cela/
abafada,/ esse ar que entra por ela./ Por isso é que os poemas têm
ritmo/ – para que possas profundamente respirar./ Quem faz um poema
salva um afogado”.
Rita, com apenas uma bala na agulha, no começo
não sabe sequer se porventura existem alvos. Se há nuvens, o tempo é
nublado, de tempestades. Aos poucos, o barco, sem mares e carente de
águas, começa sua aventura de buscas, de cais, dentro do instável. Daí
para o parcialmente nublado; até os clarões no horizonte. Vida é
sinônimo de périplo. Ser poeta é “estar pronto para os relentos”, num
andamento de “arborizar as pedras”. Coexistem potências naturais que
tanto assustam quanto libertam.
A rima pode, em alguns casos,
tornar-se camisa de força para o poema, quando o poeta tem apenas método
e técnica, dentro de procedimentos bem arrumados, cheios de razão. É
raro aquele poema que surge livre, e é bom ver surgir aquela rima que
brinca de ser irmã da palavra gêmea.
Rita Moutinho, na maioria
das vezes, reúne técnica e sentimento com o apuro dos melhores mestres,
na desmedida exata, apesar de alguns poucos poemas desandarem na
empolgação de um sentimento que é apenas desabafo e ensaio para voos
maiores.
Rita é dona de uma retórica e de uma eloquência cheias
de garbo e elegância. Ela diz sobre o que não sabe, num processo bonito
de esforço e procura.
A poesia organiza, faz balançar a copa das
árvores, inventa cores para quadros e empresta sentido para pedras. A
poesia é generosa em sua essência de cios, com seu núcleo feito de
lirismo. A primeira página de Psicolirismo da terapia cotidiana é
borrada de verde, que já é silêncio, de farta esperança. Também é verde o
fim. Se há mensagens, e a poesia é signo de mensagens, Rita aponta para
a sua verdade, uma verdade feita de símbolos, encontros e muitos
desencontros, de cadeados e portas que se abrem, às vezes. Toda alma é
límpida, mesmo que ande forrada de sombras.
Soneto que reitera o pedir um tempo
Parece que o trem não sai da estação,
não apita o navio preso ao cais.
Aviões? Só uma carroça sem tração
me conduz solfejando muitos ais.
Parece que está longe o nono mês,
que o outono não produz polpa na fruta.
A análise, com sono e flacidez,
parece uma empreitada sem labuta.
Você tenta pintar cenas bucólicas
(só falta me fazer sentir pastora!)
e, provocando em mim cruentas cólicas,
diz-me: “Querida, estás na incubadora.”
Quero um tempo, avaliar a terapia
sem apartes de vossa senhoria.
Impaciente, aflita
com a hemorragia
de minhas alegrias,
me distancio da análise.
Dúvidas se inscrevem
no presente,
e preciso viajar sozinha.
Viagem interna,
levando a alma
como lanterna.
PSICOLIRISMO DA TERAPIA COTIDIANA
. De Rita Moutinho
. Ateliê Editorial, 194 páginas, R$ 46
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