Carlos Roberto Jamil Cury
Estado de Minas: 03/08/2013
Por que nos protestos sociourbanos há críticas à educação escolar?
Em primeiro lugar, embora o Brasil não tenha conhecido revoluções como a francesa ou a americana, há vários registros históricos de rebeldias por conta de problemas políticos ou sociais. Relembrem-se os casos do Quebra-quilos e da Cabanagem, entre outros de fundo social, e os movimentos que conduziram à abdicação de dom Pedro I. Hoje, em que pesem as melhorias sociais trazidas pela transferência de rendas e pelo aumento da capacidade aquisitiva de segmentos populares, há insatisfação generalizada com a vida e a mobilidade urbanas e com a qualidade dos serviços públicos. Ela atinge diretamente o aluno obrigado a se locomover de casa e/ou do trabalho para chegar à escola. Nesse trajeto, ele desembolsa recursos e perde tempo. Isso se torna mais grave no caso do ensino noturno. Muitos estudantes são trabalhadores, o que transforma seus itinerários em mais um trajeto cansativo. O resultado se percebe no interior das salas de aula. Nesse caso, a educação compartilha o caos urbano com as deficiências de outras áreas, como trabalho, saúde e justiça.
Em seguida, é notório que a qualidade do ensino deixa a desejar por falta de condições que o tornem um elemento próprio da modernidade. O aluno percebe a distância entre a contemporaneidade dos recursos tecnológicos na rapidez das comunicações e o anacronismo de materiais de que se servem nossas escolas. Mais que isso, não são poucas as denúncias relativas à conservação de prédios escolares.
Ora, esse estado de coisas fica mais próximo da indignação social diante do enorme gasto público em obras desnecessárias de modernos estádios, alvo de denúncias de superfaturamento. Mais ainda, os políticos se veem às voltas com uma imagem desgastada, próxima da desmoralização. Por contraste, a realidade dos serviços públicos deixa ao cidadão a promessa, sempre adiada, da prestação qualificada dos direitos sociais constitucionalmente consagrados. Enquanto isso, obras urgentes de mobilidade ficam para as calendas tanto quanto as que deveriam aperfeiçoar a qualidade da oferta dos serviços públicos.
Decoro
Quando se veem as denúncias de mordomias e quebra de decoro, o olhar para dentro e para o entorno das escolas gera maior consciência crítica, permitindo a eclosão de sentimentos contidos. Quem não sabe da (in) segurança que permeia o entorno das nossas escolas, especialmente daquelas que funcionam no período noturno? Local da busca de convivência social entre os iguais e diferentes, espaço da transmissão de conhecimentos para a inserção consciente na vida profissional, a escola é o símbolo da não violência. Por isso mesmo, torna-se presa da violência que permeia nossa sociedade.
No âmbito próprio da educação escolar, há o cansaço do corpo docente por conta de descontinuidades administrativas em que programas se sucedem a cada novo governo sem que se dê continuidade a iniciativas que fariam jus a tanto. Isso gera distanciamento entre administração e funcionamento do sistema de tal modo que o diálogo, campo privilegiado da educação, vai se tornando cada vez mais difícil. Infelizmente, essa tradição de descontinuidade se casa com o caráter tardio da organização da educação nacional. Quando se compara o Brasil com a França, a Noruega e a Inglaterra, pode-se estar esquecendo do investimento secular que esses países já fizeram. O patamar histórico deles é muito diferente do nosso.
Nossa educação básica com dimensões nacionais é tardia. Remonta à Constituição de 1934, que instituiu a gratuidade e a obrigatoriedade do então ensino primário de quatro anos, determinou a elaboração de um Plano Nacional de Educação e vinculou impostos ao financiamento do setor. Maiores rigor e disciplina na aplicação dos recursos datam da imposição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), ampliado para Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que constituiu um conselho social para fiscalizar a chegada e a aplicação dos mesmos. Isso sem falar nos dois períodos de ditadura (1937 –1945 e 1967 –1985) em que a vinculação deixou de existir. É preciso não esquecer que essa desvinculação ocorreu junto da extensão da obrigatoriedade escolar de 4 para 8 anos.
Obviamente, com a redução significativa de recursos e aumento das atribuições, houve enormes prejuízos para o acesso ao ensino obrigatório, para a carreira docente e para o salário dos professores. Boa parte desse legado perverso tem ressonância em nossos dias. Por isso, não se pode imputar todo esse caráter tardio a uma só administração. Mas é preciso grande esforço por parte das atuais administrações dos sistemas de ensino, sob a coordenação do Ministério da Educação, para que a articulação orgânica permita às gestões futuras a qualidade desejada por todos.
Investimento
A ampliação de recursos no orçamento, prevista na Emenda Constitucional nº 59/09, compete com muitos outros campos de investimento. Eles são necessários até pelo prolongamento da obrigatoriedade escolar (dos 4 aos 17 anos). Não se pode adaptar uma escola de ensino fundamental para crianças da educação infantil. Não se pode ter uma escola de ensino médio (etapa conclusiva da educação básica!) apenas com recursos advindos do ensino fundamental. A família será ampliada – e muito. Se os recursos antes eram apertados, o que fazer para responder aos novos desafios ora ampliados?
Certamente, os recursos ampliados, urgentes e necessários não trazem, por si sós, o milagre da qualidade. Será preciso esforço conjunto para garantir uma formação inicial sólida e, dentro do exercício da docência, propiciar formação continuada orgânica com a área de conhecimento. Apenas três anos são suficientes para formar um bom professor? As pesquisas a respeito de aparatos formadores de docentes nas licenciaturas e na pedagogia não trazem resultados nada fabulosos a esse respeito. É preciso cortar em algum ponto, em algum momento, o círculo vicioso, a formação fica aligeirada porque a carreira não atrai e os salários não são competitivos. Temos suficiente número de licenciados para ocupar todas as vagas e postos na educação pública. Só que esses licenciados não se fizeram docentes. Foram exercer outras atividades profissionais. De outro lado, é preciso melhorar a gestão desses recursos, seja pelo controle estatal, seja pela prestação de contas, seja pela fiscalização social.
Federação
Aqui entra o problema básico: embora tenhamos incluído na Constituição o princípio organizador do setor pelo sistema nacional de educação, o núcleo essencial está por se fazer de modo completo: o regime de colaboração entre os entes federados. A validade de nossos certificados e diplomas, dentro do sistema, é nacional e uma etapa sucede a outra. Mas as etapas são segmentadas entre os entes federativos. Nada contra isso, especialmente em país federativo como o nosso, de grandes extensões territoriais e diversidade regional ampla. O problema está na celebração de um pacto que confira estrutura e funcionalidade orgânicas a esse regime de colaboração.
O grito advindo dos movimentos urbanos, saído, sobretudo, da voz dos jovens, é sinal precioso de que eles exigem a consagração efetiva de direitos longamente proclamados. Em que pesem excessos condenáveis de uns poucos violentos, é salutar vê-los criticando o desvio de recursos ou sua aplicação em coisas adjetivas e exigindo a realização em ato dos direitos sociais. A Constituição põe a educação como o primeiro dos direitos sociais. Afinal, ela é a chave de abertura para outros direitos estabelecidos e para a consecução de novos. É por ela que o protesto quer também se fazer ouvir.
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