Estado de São Paulo
Fernando Reinach
Imagine que você vai visitar um local desconhecido, um templo no Tibete. No dia seguinte, em um outro lugar, usando um equipamento instalado na sua cabeça, eu ativo os milhões de neurônios do seu hipotálamo que guardam as memórias formadas durante sua visita ao templo. No momento em que essas memórias são reativadas, você recebe um choque elétrico. No terceiro dia voltamos ao templo, e você, com medo, se recusa a entrar. Eu pergunto a razão e você afirma, apavorado: "Na última vez que estive aqui tomei um choque. Claro que não vou entrar novamente".
Duas memórias, o templo e o choque, adquiridas em locais diferentes, em dias diferentes, foram combinadas em única memória, a de que você levou um choque quando visitou o templo. Uma falsa memória foi criada em seu cérebro, e por muitos anos você vai ter medo de visitar templos. Ficção científica? Não, um experimento muito semelhante, feito com camundongos, foi descrito pelo grupo de Susumo Tonegawa, um prêmio Nobel que trabalha no MIT.
Primeiro os cientistas construíram um camundongo transgênico que tem em todas as suas células um interruptor (na verdade um gene que funciona como um interruptor, capaz de ligar ou desligar outros genes). Esse interruptor permanece desligado quando o animal ingere Dox (deoxyciclina). Quando o Dox é retirado da dieta, o interruptor é ligado.
Animais contendo esse interruptor foram criados na presença de Dox (interruptor desligado) desde a infância. Quando adultos, os camundongos foram operados, seu crânio foi aberto e um pedaço de DNA contendo um gene chamado ChR2-mCherry (CR2) foi injetado na região do cérebro responsável pela formação de memórias. Durante a operação, além de injetar o CR2, é implantada uma fibra óptica capaz de iluminar o local do cérebro que recebeu a injeção. Finda a operação, o rato volta para a gaiola.
O CR2 só é ativado quando o interruptor está ligado (falta de Dox na dieta) e ele tem duas funções. Quando ligado, o CR2 se incorpora às células do cérebro que estão ativas. Após ter sido incorporado aos neurônios, ele é capaz de ativá-los quando é atingido por um feixe de luz. Essas duas características do CR2 tornam possível o experimento. Usando esse sistema complexo é possível "marcar" as células ativas em um dado momento (ligando o interruptor), e mais tarde é possível "ativar" essas mesmas células (incidindo um feixe de luz sobre elas).
Após preparar os camundongos, os cientistas iniciaram os experimentos. Primeiro, removeram o Dox da dieta dos animais (o que ativa o CR2) e colocaram os camundongos em um ambiente totalmente novo (o equivalente a uma visita ao templo no Tibete). Os animais exploraram o ambiente, memorizando o espaço, seus cheiros e suas cores. Enquanto isso acontecia, as células que estavam sendo ativadas durante o processo de formação dessa nova memória, por estarem ativas, incorporaram o gene CR2.
Finda a visita ao novo ambiente, os camundongos foram levados para um segundo ambiente. Nesse novo ambiente, a luz instalada no seu cérebro foi acesa (isso ativa o CR2 que estimula as células marcadas durante a visita ao primeiro ambiente) de modo a reativar as memórias do dia anterior.
Ao mesmo tempo, os camundongos foram submetidos a um forte choque elétrico. Feito isso, a vida desses animais voltou ao normal: retornaram a suas gaiolas e voltaram a ser alimentados com Dox. Em resumo: os animais visitaram o templo um dia e, no dia seguinte, em outro ambiente, levaram um choque.
Animais normais passam a ter medo do local onde levaram o choque, mas não apresentam nenhuma reação estranha ao serem levados ao primeiro ambiente. Mas os animais que foram manipulados têm um comportamento completamente diferente: eles ficam com medo do primeiro ambiente, apesar de nunca terem levado choque lá.
Esse resultado demonstra que os cientistas, usando a manipulação experimental, foram capazes de provocar o aparecimento de uma memória completamente falsa no cérebro dos camundongos. Os bichinhos passaram a ter medo de um local onde nunca ocorreu algo de ruim com eles. A memória do choque foi sobreposta à memória da visita ao primeiro ambiente (o templo) e agora eles lembram que levaram um choque no primeiro ambiente, o que nunca ocorreu na realidade.
O experimento é a primeira demonstração de como é possível criar memórias falsas no cérebro de um animal, manipulando diretamente a atividade dos neurônios. Além disso, essa descoberta torna possível um novo campo de investigação científica: o da manipulação experimental do processo de formação de memórias.
MAIS INFORMAÇÕES: CREATING A FALSE MEMORY IN THE HIPPOCAMPUS. SCIENCE VOL. 341 PÁG. 387 2013
Fernando Reinach é biólogo
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