Estado de Minas - 03/07/2013
Foram dezenas os balanços da visita do
papa Francisco ao Brasil. Todos, sem exceção, destacando a mudança de
rumos da Igreja Católica. Embora o próprio cardeal Bergoglio propusesse
uma nova topologia política – em vez de esquerda e direita entra o par
centro e periferia –, desviando da inspiração da ideologia para a do
ativismo, o que se constatou foi uma aproximação destemida entre
religião e política, como há muito não se via.
Temos, todos nós,
ocidentais pós-iluministas, uma concepção muito restrita de religião.
Tudo se passa como se a crença fosse apenas experiência individual,
enraizada na sensibilidade e na intuição. Perto de ser incomunicável,
ela passaria ao largo de todo o esforço da razão em buscar a verdade.
Mesmo o compartilhamento de valores, na linha da comunidade de destino,
teria como suporte a relação direta com o sagrado, sem necessidade de
justificação de qualquer natureza. A crença não precisa ser explicada.
Como
se houvesse, no processo que nos constitui como pessoas, etapas que
fossem se sobrepondo. Sobrecarregados pelo mistério da vida, todos
nascem religiosos, com o tempo aprendem que a fé não garante nada além
do próprio sujeito e, então, abre-se o terreno para a razão, as ciências
e a arte, entre outras formas de expressão do nosso caminho em direção à
maturidade.
Esse tem sido um caminho convencional, que separa
fé e razão, ciência e superstição, indivíduo e sociedade. Basta prestar
atenção na forma como as pessoas se tornam religiosas ou têm sua
concepção de Deus moldada por uma cultura infantil: o Deus do medo, que
tudo vê e tudo pode, além do espaço da compreensão e do diálogo. No
entanto, quando se trata da experiência racional, quanto mais maduros,
mais estamos abertos ao debate com o outro. Nossa concepção de razão
amadurece com o tempo, nossa concepção de Deus queda adormecida em
motivos atávicos.
Os adultos sabem que não existiram Adão e Eva,
compreendem que se trata de uma história simbólica, o que permite,
portanto, que convivam no mesmo sujeito dimensões da religião e da
ciência. No entanto, nem tudo na religião (como querem os novos profetas
do ateísmo) se reduz ao embate com a racionalidade. Não somos fé ou
razão, mas fé e razão. A experiência religiosa, para merecer o campo de
constituição do homem maduro, precisa dar a ele uma experiência que não
seria alcançada em outro terreno que não o da espiritualidade.
Por
isso, na história do pensamento, encontramos grandes filósofos e
cientistas que, mesmo senhores dos instrumentos da razão, não apenas
mantiveram sua inserção religiosa no mundo, como fizeram questão de
refletir sobre elas. É o caso de, entre outros, dos filósofos Husserl
(1859 –1938), Peirce (1839 –1914), Bergson (1859 –1941), Maritain (1892
–1973), Lévinas (1906 –1995) e Ricouer (1913 –2005) e de cientistas do
porte de Max Planck (1858 –1947), Werner von Braun (1912 –1977) e
Einstein (1879 –1955).
O que, no projeto intelectual desses
pensadores, permite que tenham se dedicado com igual empenho à razão e à
religião? Sobretudo a certeza de que, no terreno da fé, estamos
tratando de uma experiência pessoal, e não de um conjunto de saberes ou
instrumentos. A religião – e por isso ela não é contraditória com a
razão – não se encaminha para o território do conhecimento, mas da
prática de vida. Ser religioso não é sustentar um conjunto de dogmas
(quase sempre equivocados), mas se comportar em relação aos outros a
partir da noção de compromisso. Nesse sentido, toda religião é, antes de
ser dogmática, política.
É preciso, no entanto, distinguir
religião de igreja. A experiência religiosa, mesmo em grande parte dos
casos se manifestando a partir da convenção que emana de uma igreja,
qualquer que seja ela, vai muito além da institucionalidade. Talvez por
isso os cismas e as heresias sejam o terreno comum das igrejas: não é
possível emparedar o impulso para a transcendência nas normas
sistematizadas por uma estrutura hierárquica, marcada por disputas
internas.
Uma forma de constatar essa contradição é perceber
como, hoje, todas as posições radicais em termos religiosos são
resultado de demandas políticas, não de verdades reveladas. Assim,
judeus e palestinos disputam a mesma região ancorados em argumentos
pretensamente religiosos e de precedência histórica; católicos e
evangélicos batalham pelos mesmos fiéis, igualmente sustentados por
argumentos fundamentalistas que são traduções de interesses políticos
claros; os muçulmanos são considerados perigosos em razão de
comportamentos nitidamente políticos, que ganham tradução fideísta.
Reviravolta de Francisco
A
visita do papa Francisco ao Brasil foi histórica exatamente por revelar
a dimensão política da experiência religiosa. Não se trata de buscar
aproximação com a teologia da libertação, em sua opção preferencial
pelos pobres, ou de valorizar as críticas dirigidas ao consumismo e ao
modelo inviável de desenvolvimento econômico concentrador e
anti-humanista. Fosse isso, o papa apenas estaria apontando uma reversão
de rota, um arejamento nas posturas tomadas pela Igreja Católica nas
últimas décadas.
Há uma radicalidade nas atitudes de
pronunciamentos de Bergoglio que apontam para a recuperação da dimensão
social e comunicativa da experiência religiosa. O papa assumiu uma
posição que vira as costas para o clericalismo (uma igreja que tem como
gozo a realização ritual de seus mandamentos e convenções, entre a
burocracia e o autoritarismo), para a ostentação (com a desconstrução de
todos os símbolos de distinção de classe que vieram da nobreza para os
corredores do Vaticano) e para o solipsismo (mantido vivo pelas seitas
conservadoras que valorizam apenas atitudes pessoais e, quando muito,
assistencialistas e redentoras de culpas psicológicas).
Além
disso, e talvez tenha sido o ponto marcante da reviravolta franciscana, o
papa fez questão de juntar no mesmo projeto as dimensões da
espiritualidade e da convivência social. Reconheceu erros, defendeu
punições exemplares aos ladrões, fugiu de qualquer desvio corporativista
no julgamento de ações tomadas no âmbito da vida social. Diferenciou
pecadores – que somos todos, segundo ele – dos criminosos. Aos
primeiros, o perdão; aos outros, a cadeia.
Enquanto os papas
anteriores tentavam separar pedofilia de Igreja e crimes financeiros da
cúria, por exemplo, o novo papa não quis dar a ações condenáveis a capa
de qualquer justificação religiosa, histórica ou dogmática. Nesse
sentido, lembra a atitude de João XXIII, que, ao saber de uma greve dos
servidores do Vaticano, ordenou o imediato processo de negociação que
resultou em aumento de salário. Quando advertido de que o dinheiro
sairia de obras da Igreja, respondeu: “Primeiro a justiça, depois a
caridade”.
Por fim, a nota preocupante: há preconceito violento
de parte da sociedade brasileira em relação aos evangélicos. É preciso
reconhecer que grande parte da mídia e dos estudiosos da religião –
postura que ecoa na classe média – compreende as religiões pentecostais e
neopentecostais como capitulação, um sintoma de empobrecimento
espiritual.
Várias análises apresentadas na última semana faziam
questão de encarar a perda de fiéis da Igreja Católica para os
evangélicos como um problema que precisava ser superado, doença social
carente de tratamento, nunca como opção livre dos crentes. Nação
acostumada a se sentir católica (“o maior país católico do mundo”),
parece haver dor de consciência pelos fiéis perdidos pelo catolicismo,
dor esta que instiga pesquisadores, jornalistas e leigos a se esforçar
com ideias que contribuam para a “recuperação” dos fiéis à sua origem.
Há
inspiração quase higienista e discriminatória por trás dessa atitude.
Não que os evangélicos façam por merecer boa vontade, é só seguir suas
manifestações preconceituosas, homofóbicas e questionáveis em termos
éticos, sociais e econômicos. Mas essas são atitudes das quais a Igreja
Católica, por sua vez, não pode igualmente se jactar em sua longa
trajetória de equívocos.
A melhor lição ficou mesmo com
Francisco ao se dirigir aos jovens: “Sejam revolucionários”. É bem mais
edificante que ser católico ou evangélico.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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