ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Ao mestre, com rapadurinhas
São Paulo, 1994
EU NÃO SUPUNHA que 1994 seria um ano de ensinamentos tão importantes para mim. À época vivia num limbo. Nos anos 1980 participara ativamente, como compositor, no movimento conhecido como vanguarda paulistana.
Mas o cenário musical estava mais morno na década seguinte e eu buscava me inscrever numa outra categoria artística: a de escritor. Foi quando soube que um colega, o jornalista Mylton Severiano, era muito próximo ao contista João Antônio (1937-96).
Na noite de 23 de dezembro de 1993, fui apresentado ao próprio no restaurante Consulado Mineiro, no bairro de Pinheiros, em São Paulo.Por algumas horas ele dissertou sobre temas que iam de Garrincha a padre Vieira, passando por sua experiência como autor-residente na Alemanha.
Queria muito fazer parte da confraria de missivistas que se correspondiam com ele. Já no dia seguinte preparei um texto impressionista sobre a noite no Consulado e pedi que Mylton Severiano o entregasse ao mestre.
No "Panegírico a João Antônio", em determinado trecho, redigi:
"Eu vi um homem. Eu, tão cultura rock. Um Mário Reis literário, um três-bês: branco, besta, bem-nascido... eu vi um homem esbravejando por um ideal. Meu Deus, e esbravejar por um ideal é a antítese do pop que me foi vendido."
Adicionei à carta uma caixa de rapadurinhas. Em 17 de janeiro de 1994, Mylton me enviou um fax da última carta que recebera de João Antônio. Havia nela uma menção a mim.
"Eis aí um Castelo que promete escrever com a alma e o coração. E, então, já se adentrou em terreno sagrado. Vamos dar um jeito no Castelo, vamos lhe dar uma boa ripada', talvez uma esculhambação'? Direta ou indiretamente, ele é um nosso irmão, mais novo, em Noel Rosa, não é?
É de se tentar construí-lo. Ele precisa cair na vida, vidão? Primeiro: ele não tem culpa nenhuma de ser um filho da classe média. Chico Buarque ou Noel Rosa são exemplos."
Em 25 de janeiro de 1994 fui aceito no grupo e recebi do contista a primeira de uma série de mensagens.
"Não me cabe, por direito ou por torto, evangelizar a vida de quem quer que seja. Assim, pouco tenho a lhe acrescentar. Já lhe falei sem parar lá no Consulado Mineiro."
Contudo, mais à frente, ele passaria a dar aconselhamentos que me surpreenderam pela disposição, quase didática, no ensino de seu "métier".
"Descubra o de que você gosta. E dentro dele, o de que você gosta mais. E dentro dele, o que você ama. Então, será aquilo. Procure escrever sobre o que você ama. E as variações do amor são um leque enorme. Você poderá ser um gigante nesse sentido."
Durante vários meses, vieram mais outras correspondências da mesma natureza. Quando lhe escrevi afirmando que chegara à conclusão de que o meu veio era o humor, aconselhou-me a ler Rabelais "" "ele é pai e avô de muitos grandes do humor".
E ainda grafou uma definição notável sobre o tema: "Nada mais sério que o humor. É a quinta-essência da seriedade. Acima dele, só o pensamento, em termos filosóficos. E acima de acima (a meu pobre entender) só a poesia. E acima, mais acima, a profecia".
Do primeiro ao último, todos os seus textos demonstravam uma grande generosidade com um aspirante a ficcionista como eu. A atitude era contrastante com algumas opiniões que diziam que o criador de "Malagueta, Perus e Bacanaço" seria um gênio difícil.
Depois de algum tempo, o filósofo da malandragem, para minha surpresa, passou a me pedir insistentemente que telefonasse à sua mãe, dona Irene. Como bom discípulo, obedeci.
"Elogie muito o filho primogênito dela, diga que sou um valor das letras pátrias, um caso de talento inefável, um senhor texto, uma senhora cultura e outras loas. Mesmo que você minta há de ser virtude. Haverá um humanismo porejante nessas mentiras e, assim, havemos de ficar mais amigos. Dei muito trabalho a meus pais e sempre fui um desgarrado." Até hoje me pergunto: teriam sido as rapadurinhas que o adoçaram?
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