Casa do Povo, 60, volta à cena cultural
Centro cultural no Bom Retiro, que abrigava escola de primeiro grau e teatro, teve seu auge nos anos 1960-1970
Projeto para reforma do edifício modernista, na rua Três Rios, foi oferecido de graça pelo arquiteto Isay Weinfeld
Dentro do edifício, que completa 60 anos neste mês, a história é outra. Gente que viveu a época de ouro do lugar --onde funcionava uma escola, um teatro e um centro de cultura-- e pessoas que não viveram nada daquilo batalham para ocupar o local.
A Casa do Povo, nome de guerra do Instituto Cultural Israelita Brasileiro, foi criada por imigrantes judeus progressistas e de várias correntes de esquerda que se estabeleceram no Bom Retiro a partir da Primeira Guerra.
O auge do centro foram as décadas de 1960-1970 e a decadência, os anos 1980.
Uma foto do prédio degradado postada no Facebook, há cerca de três anos, foi a deixa para que ex-alunos do Scholem Aleichem, a escola da Casa do Povo, voltassem ao local e iniciassem o projeto de revitalização.
"Primeiro, tivemos que sanear financeiramente. Agora, a coisa ganhou vida, começou a pulsar de novo", diz o neurologista Jairo Degenszajn, presidente do conselho deliberativo da Casa do Povo.
A ajuda surge de vários lados. O projeto de reforma do prédio está sendo feito gratuitamente pelo arquiteto Isay Weinfeld.
O francês Benjamin Serousse, que foi curador do Centro de Cultura Judaica, soube do trabalho e juntou-se voluntariamente ao conselho. Serousse tem usado seus contatos na área cultural para atrair parceiros e atenção ao centro.
Em 2012, o Teatro da Vertigem estreou "Bom Retiro 958", peça ensaiada no local e que acabava no cenário de um teatro em destroços: o Taib, da Casa do Povo.
Grupos de dança começaram a usar o espaço para residência artística. Um deles, o Lote#2, que entrou para o projeto Rumos, do Itaú Cultural, fez sua apresentação do projeto lá, em junho.
O enorme salão onde o grupo se apresentou, antigamente dividido em salas de aula, ganhou pintura nova e extintores de incêndio patrocinados pelo banco.
Em julho, a Feira de Arte Impressa Tijuana reuniu mais de 50 expositores no prédio.
Novas parcerias também alimentam o projeto de revitalização, diz Mila Zacharias, da Anamauê, empresa de produção e consultoria em artes que também se uniu voluntariamente ao grupo.
Uma dessas parcerias, com a Bienal de Arquitetura e o Instituto Goethe, vai levar os expositores alemães da bienal para as salas da Casa do Povo, em outubro.
VANGUARDA
As origens do instituto cultural são anteriores à construção do prédio, projeto de Mange, Martins e Engel.Pai da Casa do Povo, o Centro Cultura e Progresso realizou, por exemplo, a primeira exposição de HQ no Brasil, em 1951, que contou com originais de autores como Alex Raymond ("Flash Gordon") e Al Capp ("Ferdinando").
A escola Scholem Aleichem, outra iniciativa do grupo, foi fundada em 1934, com uma proposta pedagógica vanguardista para a época.
O teatro Taib veio depois. Projetado pelo arquiteto Jorge Wilheim, foi inaugurado em 1960. Naquela década e na seguinte, a atividade cultural e política era intensa.
Nos anos 1980, por razões que vão do êxodo da comunidade judaica do bairro ao isolamento ideológico das esquerdas, a atividade minguou, a escola fechou e o centro se esvaziou.
Na boa fase atual, os 60 anos da Casa do Povo serão comemorados nos dias 23 e 24 com seminários e debate com a urbanista Raquel Rolnik sobre as necessidades culturais da cidade.
"A região voltou a entrar no circuito cultural de São Paulo, mas faltam espaços menos tradicionais. A Casa do Povo ressurge em boa hora", diz Degenszajn.
DEPOIMENTO
'Minha infância e adolescência foram balizadas pelo instituto'
BOB WOLFENSONESPECIAL PARA A FOLHA"Nasci e me criei no Bom Retiro, bairro central da cidade de São Paulo, onde meus avós maternos chegaram, diretamente da Polônia, nos anos 1920, fugindo das perseguições aos judeus e da vida dura na Europa do período entreguerras.Meu mundo ia da rua Bandeirantes ao Jardim da Luz, onde brincava e pegava girinos nos laguinhos existentes na época; e da rua Afonso Pena até a esquina da rua Silva Pinto com a da Graça. Nesse quadrilátero de aproximadamente dez ruas vivíamos entre judeus e poucos brasileiros. Aos meus olhos de menino, o Bom Retiro era o mundo todo.
Minha família era ligada a um setor progressista laico da comunidade, que aos poucos foi se estabelecendo no bairro, co-dirigindo o ICIB, Instituto Cultural Israelita Brasileiro, e sua filiada, a escola Scholem Aleichem.
Ambos ocupavam um prédio na rua Três Rios e eram redutos importantes do pensamento de esquerda.
Ao contrário dos mais sectários, nos sentíamos amalgamados à cultura brasileira e, seguindo uma vocação secular dos judeus progressistas, queríamos nos integrar ao lugar que havíamos escolhido. Ser brasileiro era um sentimento genuíno.
O ICIB, também conhecido como Casa do Povo, em uma clara alusão ao jargão socialista de seus congêneres soviéticos, era muito atuante em São Paulo, extrapolava os limites do bairro e foi um foco importante de resistência à ditadura no final dos anos 1960 e princípio dos 1970.
Minha infância e minha adolescência foram balizadas pelo instituto.
Meus pais, meus tios e todos os agregados da família eram muito ativos na Casa do Povo. Foi na escola Scholem Aleichem que estudei até os dez anos. Adolescente, fiz minha primeira exposição de fotografia no prédio.
Fiquei muito tempo sem ir ao bairro. Voltei para fazer as fotos mais recentes da exposição "Bom Retiro e Luz: Um Roteiro, 1976 "" 2011" e me deu uma tristeza danada.
O prédio da rua Três Rios só não tinha virado escombro por esforço de alguns antigos fundadores voluntários que ainda vivem no bairro.
Eu já vi algumas tentativas de reerguimento da Casa do Povo. A atual parece a mais consistente."
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