Companhia das Letras adquiriu prosa e poemas da poeta carioca e planeja volume no estilo do 'Toda Poesia', de Paulo Leminski
Nome maior da poesia dos anos 1970 ganha reedição no fim do ano, quando se completam 30 anos de sua morte
Há anos fora de catálogo, a obra híbrida de prosa e poesia da carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) foi adquirida, nos últimos dias, pela Companhia das Letras.
A casa planeja para novembro um volume alentado, no estilo do "Toda Poesia" de Leminski, que saiu em fevereiro com 5.000 exemplares e já vendeu dez vezes isso.
A partir de 2014, novas edições devem sair do acervo mantido desde 1999 no Instituto Moreira Salles, no Rio. A curadoria é de Armando Freitas Filho, amigo a quem a poeta delegou a responsabilidade de cuidar de sua obra.
Dona de uma poesia tão sedutora quanto ela própria, Ana C., como gostava de ser chamada, repercutia em seus escritos as influências pop, incluindo música e cinema, que marcaram sua geração.
Mas agregava a isso sua origem erudita --filha de sociólogo com professora de literatura, com mestrados pela UFRJ e pela Universidade de Essex, na Inglaterra, tem trabalho elogiado na área de crítica literária e tradução.
"Além do lado cult, que gera estudos na universidade, ela tem um viés pop que combina com as redes, um potencial que buscamos ressaltar na obra do Leminski", diz a editora Sofia Mariutti.
RETORNO
Ana C. teve apenas um livro publicado por editora em vida, "A Teus Pés" (1982), justo pela Brasiliense da qual poucos anos depois o editor Luiz Schwarcz sairia para criar a Companhia das Letras.A obra trazia poemas inéditos junto ao conteúdo das edições independentes "Cenas de Abril" (1979), "Correspondência Completa" (1979) e "Luvas de Pelica" (1980).
Antes de morrer, um ano após a publicação de "A Teus Pés", ela teve o raro prazer para um poeta de ver sair uma segunda tiragem de seu livro. Com a última edição pela Ática datada de 2002, "A Teus Pés" hoje é oferecido em sebos on-line por preços que variam de R$ 70 a R$ 190.
A edição da Companhia das Letras deve ter cerca de 500 páginas, com os independentes, "A Teus Pés", o póstumo "Inéditos e Dispersos" (1985) e alguns textos de "Antigos e Soltos" (IMS, 2008). A meta é que custe menos de R$ 50.
Arquivo que está no IMS desde 1999 tem mais de 600 itens e inclui a produção de Ana Cristina Cesar desde a infância
Aos 9, ela fazia jornais caseiros, onde já transparecia o interesse político que viria à tona no fim dos anos 1970
Ninguém que tenha tido acesso ao seu acervo --instalado a partir de 1999 no Instituto Moreira Salles, na Gávea, sob cuidados de Manoela Daudt, e hoje aberto a pesquisadores--pode duvidar de que exista material ali para tantas outras novas edições.
É um acervo com mais de 600 itens, entre livros, periódicos e trabalhos produzidos desde a infância. Ela editava em casa, aos nove anos, o jornalzinho "O Mundo", do tamanho de uma caixa de fósforo, no qual ela prometeu por edições a fio, uma crônica nunca enviada por seu pai, Waldo Cezar.
A criação precoce permite reconhecer traços que se destacariam na produção adulta de Ana C., como a atenção ao trabalho de edição, o humor feroz (após muito esperar a crônica do pai, ela deixa duas páginas de "O Mundo" vazias, com um aviso ao final: "Um momento, ele já acorda!") e o interesse político.
Em outra edição caseira, a criança anota: "A política externa está prejudicando o Brasil, pois está comentando demais a sua situação". Já se percebiam ali sinais da jovem que, aos 20 e poucos anos, se engajaria na produção do jornal alternativo "O Beijo".
"O Beijo' era uma crítica de dentro da esquerda a uma esquerda mais ortodoxa, abordagem à qual ela era passionalmente ligada, com interesse em questões comportamentais e de gênero", diz o crítico e poeta Ítalo Moriconi, que pertencia àquela turma.
ENSAIOS
A produção ensaística de Ana C., que inclui "Escritos na Inglaterra" (1988), sobre tradução, e "Escritos no Rio" (1993), com artigos de jornais, e ainda cartas (em "Correspondência Incompleta", de 1999), estão nos planos da Companhia das Letras.Todo o material foi organizado por Armando Freitas Filho. "Ana e ele eram muito amigos. Quando ela morreu, meus pais acharam que ninguém melhor para saber o que Ana gostaria de publicar", diz o jornalista Flávio Lenz, 58, um dos irmãos da poeta, ao lado de Felipe, 52.
A única edição na qual Armando não esteve envolvido foi "Antigos e Soltos" (2008), organizado por Viviana Bosi. Esta saiu da "pasta rosa", que ficou alguns anos esquecida no armário da poeta.
Armando foi a última pessoa a falar com Ana C., por telefone, em 29 de outubro de 1983. Ela estava deprimida, mas ele, gripado, não pôde ir encontrá-la."Ela teve uma sobrevida maior que a vida em matéria de reconhecimento", ele avalia. Acha bobagem tentativas de buscar na obra dela as razões do suicídio.
É um repúdio que a própria poeta já deixava claro, no texto "Três Cartas a Navarro", publicado em "Antigos e Soltos": "Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não permitas que digam que são produtos de uma mente doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo biografílico."
DA ENVIADA ESPECIAL AO RIOAna Cristina Cesar era "a mulher mais discreta do mundo: esta que não tem nenhum segredo". Assim ela se definia, mas estudiosos não demoraram a perceber que a poeta era muito menos confessional do que dizia ser.
Quem logo atentou para isso foi Maria Lucia de Barros Camargo, na tese de doutorado "Atrás dos Olhos Pardos: uma Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar", defendida em 1990 na USP e publicada em 2003 pela editora Argos.
Na leitura dela, e também na da crítica literária Flora Süssekind, Ana C. se apropriava de versos alheios, de gente como Manuel Bandeira e Mário de Andrade, para fazer uma colagem que soava extremamente pessoal.
Esse estilo inspirou mais de uma geração de poetas. Um dos nomes mais reconhecidos no gênero hoje, a gaúcha Angélica Freitas, 40, credita à leitura de Ana C. seu interesse por escrever poesia.
"Eu a li aos 15 anos. Até então, tinha escrito uns versinhos. Os poemas me causaram grande estranhamento. Muita coisa ali era um mistério. Mas um mistério que mostrou que poesia também pode ser investigação", ela diz.
Era diferente de tudo o que Angélica tinha lido até então, segundo ela argumenta.
Não só ela sentiu esse impacto. "A influência da Ana para mim é total. Se puder escolher uma pessoa que me fez escrever poesia, foi ela", diz a carioca Alice Sant'Anna, 25. "O que me atraiu foi ser muito coloquial o tempo todo e fazer o tempo todo esse jogo da falsa intimidade. Não há nenhum segredo, na verdade: ela está no domínio total do que conta", argumenta.
A definição de Ana C.como "poeta marginal" é algo sempre visto com ressalvas --ela é um dos nomes destacados na exposição "Poesia Marginal: Palavra e Livro", em cartaz no IMS do Rio.
"É difícil encontrar um poeta que marque todos os xis' para entrar na categoria marginal, mas ela também não se desvinculou totalmente. Talvez a riqueza da geração seja a heterogeneidade", diz Alice.
Quem logo atentou para isso foi Maria Lucia de Barros Camargo, na tese de doutorado "Atrás dos Olhos Pardos: uma Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar", defendida em 1990 na USP e publicada em 2003 pela editora Argos.
Na leitura dela, e também na da crítica literária Flora Süssekind, Ana C. se apropriava de versos alheios, de gente como Manuel Bandeira e Mário de Andrade, para fazer uma colagem que soava extremamente pessoal.
Esse estilo inspirou mais de uma geração de poetas. Um dos nomes mais reconhecidos no gênero hoje, a gaúcha Angélica Freitas, 40, credita à leitura de Ana C. seu interesse por escrever poesia.
"Eu a li aos 15 anos. Até então, tinha escrito uns versinhos. Os poemas me causaram grande estranhamento. Muita coisa ali era um mistério. Mas um mistério que mostrou que poesia também pode ser investigação", ela diz.
Era diferente de tudo o que Angélica tinha lido até então, segundo ela argumenta.
Não só ela sentiu esse impacto. "A influência da Ana para mim é total. Se puder escolher uma pessoa que me fez escrever poesia, foi ela", diz a carioca Alice Sant'Anna, 25. "O que me atraiu foi ser muito coloquial o tempo todo e fazer o tempo todo esse jogo da falsa intimidade. Não há nenhum segredo, na verdade: ela está no domínio total do que conta", argumenta.
A definição de Ana C.como "poeta marginal" é algo sempre visto com ressalvas --ela é um dos nomes destacados na exposição "Poesia Marginal: Palavra e Livro", em cartaz no IMS do Rio.
"É difícil encontrar um poeta que marque todos os xis' para entrar na categoria marginal, mas ela também não se desvinculou totalmente. Talvez a riqueza da geração seja a heterogeneidade", diz Alice.
OS LIVROS FORA DE CATÁLOGO DE ANA C.
1979, poesia (independente)
"Correspondência Completa"
1979, carta fictícia (independente)
"Luvas de Pelica"
1980, poemas em prosa (independente)
"Literatura Não É Documento"
1980, dissertação de mestrado pela UFRJ, sobre literatura e cinema (MEC/Funarte)
"A Teus Pés"
1982, prosa/poesia, incluindo os anteriores; último título em vida pela autora (Brasiliense, reeditado em 1998 pela Ática)
"Inéditos e Dispersos"
1985, poesia/prosa (Brasiliense, reeditado em 1998 pela Ática)
"Escritos na Inglaterra"
1988, ensaios sobre literatura, inclui dissertação de mestrado pela Universidade de Essex, na Inglaterra: tradução anotada do conto "Bliss", de Katherine Mansfield (Brasiliense)
"Escritos no Rio"
1993, textos publicados na imprensa (Brasiliense/UFRJ)
"Correspondência Incompleta"
1999, cartas (Aeroplano)
"Antigos e Soltos"
2008, prosa/poesia (IMS)
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