'Equívocos' evitáveis
Muita gente supõe que o 'vossa' de 'Vossa Santidade' e afins impõe o possessivo 'vossa', que é outra história
O papa se foi. Com ele, as confusões entre as formas de tratamento "Sua Santidade" e "Vossa Santidade". Foi um tal de ouvir/ler jornalistas, comentaristas, convidados de programas jornalísticos etc. se referirem ao papa das duas maneiras que os pobres ouvintes/leitores devem ter ficado um tanto desorientados, sobretudo aqueles que porventura desconheçam o emprego culto dessas formas de tratamento.
Antes de entrar no tema, lembro que, quando se opta pela norma culta ou quando se impõe o uso desse registro (caso do pronunciamento de altas autoridades em cerimônias oficiais), convém conhecer o território em que se está, do contrário...
No domingo à noite, o vice-presidente da República, Michel Temer, saiu-se bem ao se dirigir a Sua Santidade. Opa! Pronto! Acabo de dar um exemplo do uso culto de formas de tratamento iniciadas por "sua" ("Sua Santidade", "Sua Excelência", "Sua Senhoria" etc.). Quando se fala do ser ao qual se refere o pronome de tratamento, emprega-se a forma iniciada por "sua". Foi o que eu fiz no trecho "...ao se dirigir a Sua Santidade", no qual empreguei "Sua Santidade" para referir-me ao papa.
Em sua fala, Temer empregou "Vossa Santidade" porque falava ao papa (e não do papa), ou seja, dirigia a palavra diretamente a ele. Dia desses, nas matérias sobre o "bebê real" (haja estômago para ouvir tanta bobagem sobre um assunto tão desimportante!), notou-se a mesma confusão. O pimpolho foi citado (corretamente) por alguns como "Sua Alteza", e por outros como "Vossa Alteza". Que eu saiba, ninguém conseguiu entrevistar o rapazote.
Muita gente supõe que o "vossa" de "Vossa Santidade" e afins impõe o possessivo "vossa", que é outra história. Na linguagem formal, o possessivo "vossa" se associa ao pronome reto "vós" ("...bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus"...).
Com os pronomes de tratamento, que são da terceira pessoa gramatical, empregam-se os possessivos da terceira pessoa, ou seja, "seu(s)" e "sua(s)": "Vossa Santidade sabe que SUA visita ao Brasil..." (e não "vossa visita ao Brasil..."). Os pronome oblíquos também devem ser da terceira pessoa, ou seja, devem ser "o(s)", "a/s" e "lhe(s)": "Vossa Santidade sabe que SUAS palavras comoveram o Brasil. Os jovens agora O veem como alguém realmente capaz de transformar a Igreja e esperam que nada LHE tire a coragem de enfrentar as barreiras que...".
É claro que a frase que encerra o parágrafo anterior só poderia ser dita por alguém que dirigisse a palavra diretamente ao papa; se alguém falasse do papa, deveria trocar "Vossa Santidade" por "Sua Santidade".
Outro equívoco evitável consiste no emprego do acento indicador de crase antes de "Sua (ou Vossa') Santidade". Basta um pouco de atenção para que se perceba que não se usa artigo definido antes desses pronomes. Ninguém dirá algo como "Os fiéis creem na Sua Santidade" ou "Os jovens esperaram pela Sua Santidade" ou ainda "Os brasileiros gostaram muito da Sua Santidade". No lugar de "na", "pela" e "da", que resultam da fusão de preposição e artigo, usam-se apenas as preposições "em", "por" e "de", respectivamente: "...creem em Sua Santidade", "...esperaram por Sua Santidade", "...gostaram muito de Sua Santidade".
Como se sabe, se não existe artigo, nada de acento indicador de crase: "O vice-presidente dirigiu a palavra a (e não à') Sua Santidade"; "Peço a (e não à') Vossa Senhoria que reconsidere sua decisão".
Em tempo: quem já passou por um concurso público sabe que o que discuti nesta coluna é assunto frequente nas provas de português desse tipo de seleção. É isso.
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