Jornalismo cultural
A imprensa cultural sofre em um contexto de oposição à reflexão; tornou-se quase proibida a matéria 'difícil'
Há duas semanas foi anunciado o fechamento da revista "Bravo!", onde trabalhei por oito anos. Em abril, foi a vez do caderno "Sabático", do "Estadão", que tratava de literatura. Na última década, outros veículos culturais tiveram o mesmo destino, entre eles a "Palavra", a "Bizz", a "Set" e a "EntreLivros".
Sempre que um evento assim ocorre, lamento pelo desemprego de colegas talentosos. Em seguida, me junto aos debates sobre a crise dos modelos de financiamento da imprensa, em particular a escrita. O tom geral é de lamento pelo fim de bons projetos editoriais, que nunca terão a rentabilidade de similares dedicados a dietas e fofocas.
Não é uma avaliação errada. A imprensa cultural sofre em um contexto que parece conspirar contra o esforço reflexivo. Tornou-se quase proibida a matéria "difícil", tanto na linguagem quanto no conteúdo, como se ninguém pudesse ser desafiado a conhecer e entender aquilo que ainda não conhece e entende.
Ocorre que essa é a visão "mainstream". Ou a visão do jornalista. Na do público, nunca houve tanto espaço para falar de livros, peças, discos, exposições, movimentos estéticos. Artistas se comunicam diretamente com fãs, opiniões pulverizadas tomam o lugar da crítica tradicional. Dá para se informar usando fontes no mundo todo, de jornalões em papel a blogs ultraespecializados, em um vasto espectro temático e ideológico.
Como se tornar comercialmente viável nesse cenário? Se eu soubesse, estaria em uma jacuzzi de leite paga com honorários de consultor. Posso opinar é sobre relevância jornalística e cultural. Tenho certeza de quem não vai tê-la: os que seguirem apostando em antigas instâncias de autoridade, que faziam o filtro do saber disponível somente porque detinham os meios tecnológicos para tanto.
Idem os que acreditam no mínimo denominador, tentando salvar veículos ao torná-los "acessíveis". Diante de uma cultura tribalizada, de grupos que se aprofundam em seus interesses específicos, em uma produção incansável e apaixonada de narrativas e opiniões, ser generalista e superficial é um caminho seguro para se tornar anódino.
Ao mesmo tempo, a tribalização tende a reiterar valores em vez de discuti-los. Aderir a eles é legítimo e, em muitos casos, desejável, mas não é jornalismo --atividade ligada à busca (talvez utópica) por equilíbrio, por distanciamento na coleta de dados que vão permitir conclusões para além de interesses e ideias em bloco.
Não há pensamento em cultura --como não há em política-- sem confronto. Cada elemento do mundo digital --a interatividade, a fragmentação, o gosto pelo novo e pela síntese-- tem mais de uma faceta. A fonte estimulante de conhecimento pode virar um fetiche, quando não um "ethos" autoritário. Os pequenos consensos da internet são tão nocivos quanto os grandes consensos da velha mídia.
Identificar e dizer isso publicamente é menos simples do que parece. Com o mercado do jeito que está, soa até leviano pregar que o jornalista deva ir contra hábitos e gostos do leitor. Mas não vejo outra saída para quem acredita na profissão. "Ir contra" não significa encarnar o polemista automático. Às vezes, é o contrário: resistir à volúpia de etiquetar e julgar tudo. Escrever um bom ensaio ou reportagem só é possível com embasamento, o que demanda trabalho e repertório construído com paciência, além de abnegação para resistir aos ganhos imediatos da notoriedade.
Não estou certo de que o velho humanismo, do qual a melhor imprensa cultural é herdeira, sobreviverá nas próximas décadas. Torço para que sim, assim como torço para que surjam novas formas de remuneração para profissionais e empresas, tanto nos modelos que conhecemos quanto nos do futuro.
Enquanto isso não ocorre, resta o otimismo da ação. No caso do jornalista, trata-se da recusa à indulgência com os outros e com si próprio. Se vale para épocas de abundância, que recompensam até materialmente o lugar-comum, por que seria diferente quando a crise nos empurra para a liberdade?
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