sábado, 16 de agosto de 2014

Alice e os átomos - João Paulo

O jornalista Bernardo Kucinski estreou maduro na ficção com trama política e agora enfrenta o desafio do romance policial ambientado na universidade


João Paulo
Estado de Minas: 16/08/2014


Para B. Kucinski, a narrativa de suspense não deixa de ser um instrumento de crítica social (Carolina Ribeiro/Divulgação)

Para B. Kucinski, a narrativa de suspense não deixa de ser um instrumento de crítica social

Bernardo Kucinski sempre teve o poder de incomodar, no bom sentido, exigindo dos outros que fossem mais sérios com seus propósitos. No jornalismo, foi autor de livros importantes sobre jornalismo revolucionário, alternativo e econômico e assessor do presidente Lula no primeiro mandato. Formado em física, trabalhou na imprensa brasileira e internacional.

Levou suas exigências para a universidade, território onde percorreu pacientemente todas as vias. Um belo dia, já na casa dos 70, percebeu que a literatura poderia trazer a liberdade sem abrir mão dos compromissos com o mundo real. Estreou com o romance K, que teve acolhida surpreendente do público e da crítica para uma estreia, e, em seguida, publicou o volume de contos Você vai voltar para mim.

Os dois livros tratam do período da ditadura militar, sendo que o romance leva para a ficção a experiência pessoal do autor, que teve uma irmã, Ana Rosa Kucinski, sequestrada e morta pela ditadura. Professora da USP, seu corpo nunca foi encontrado. Bernardo aponta o dedo para a covardia da instituição, que não a defendeu. Acadêmicos e academia não saem bem de sua avaliação. Ele esperava a hora de voltar à carga.

Os primeiros livros – a coletânea de contos e o romance – têm ainda em comum o sentido fragmentário da narrativa. Em K, o foco muda a cada capítulo, gerando um discurso plural. Como se várias narrativas confluíssem para tentar aclarar um mistério anunciado. A força da circunstância e o teor dos acontecimentos, afinal de contas, são mais importantes que uma possível busca de coesão. Em primeiro lugar, há algo a ser dito.

Bernardo Kucinski volta agora com um romance policial, Alice, que sai pela Rocco. Estão de volta algumas características das primeiras ficções, sobretudo o senso crítico em relação às instituições sociais, da universidade à polícia. No entanto, pelas características próprias da literatura policial, a estrutura é mais firme, a narrativa precisa ao mesmo tempo avançar e deixar mistérios, os personagens devem ser desenhados com mais cuidado.

Alice é um típico livro policial clássico. O leitor fica sabendo do crime logo no começo e é desafiado a acompanhar um investigador na busca do motivo e do modo como o assassinato foi cometido. Além disso, o meio no qual o crime se deu, um laboratório de física da USP, ganha uma importância decisiva. O autor usa toda a sua experiência com a academia para explicar tanto a vaidade humana como as diatribes burocráticas que cercam a vida dos cientistas e professores.

Mas trata-se de um livro de crime. B. Kucinski conhece bem a tradição em que se meteu: a todo momento cita clássicos da literatura policial e seus autores canônicos, às vezes para esclarecer o leitor sobre os rumos da investigação, outras vezes para confundi-lo. São nomeados, entre outros, Georges Simenon, Agatha Christie, Nero Wolfe e Conan Doyle. Um recurso de metalinguagem que poderia ser dispensado sem afetar a narrativa. Afinal, a grande ambição de um romancista policial deve ser criar uma voz própria, e não emular o cânone.

Física Alice é um romance com muitos méritos. A história do assassinato de uma jovem cientista, de origem japonesa, bonita e solitária, que é objeto de inveja de colegas menos talentosos, tem elementos de interesse. Além do mistério do assassinato, que vai se tornando cada vez mais complexo com a entrada de informações científicas – tratadas com clareza –, a crônica da vida universitária é bem conduzida.

O leitor aprende, de forma quase didática, como são construídas carreiras, como se dá a disputa de poder, como as publicações se tornam um caminho artificial para alavancar recursos para laboratórios e pesquisas, de que forma os servidores se aproveitam das regras para dirigir licitações, como o assédio moral e sexual dá as cartas nas relações. A comparação entre a universidade e as conhecidas fragilidades da polícia é pedagógica. Por vezes, o autor se torna didático demais, o que tira interesse da trama para dar mais peso à circunstância.

Mas Kucinski lida bem com todas as variáveis, sobretudo com os personagens, dos centrais aos secundários, que são bem descritos e ajudam a dar veracidade ao quebra-cabeça que vai sendo montado. São eles: o delegado Magno, um policial humanista com seus dramas de consciência; o professor Zimmerwald, um cientista banido pelos militares, que mescla senso ético e estético (inspirado em Mario Schenberg); o orientando Rogério, com sua devoção ingênua. E ainda o professor Akira, com arraigados valores morais nipônicos; o administrador carreirista Bruno Figueiroa; e, finalmente, a protagonista, a infeliz Alice Nakamura, que é a sombra de uma vida promissora que conquista o leitor mesmo começando a narrativa morta em seu laboratório, com o sangue escorrendo até formar uma poça no chão.

O autor fez bem a passagem do jornalismo para a literatura. Agora, parece preocupado em expandir seus instrumentos expressivos, enfrentando um gênero difícil (as citações dos clássicos mostram que ele tem ambições altas) e feito para profissionais. Mesmo com algumas escorregadas e explicações em excesso, Alice segura o interesse até o fim e dá ao leitor a sensação de que aprendeu algo. O que não deixa de ser uma reação comum em narrativas policiais.

O melhor fica mesmo para a fusão equilibrada de diversão e crítica social, tendo mais uma vez a universidade como alvo. O livro é uma sociologia selvagem (como há psicanálise selvagem) da academia. Nisso, K e Alice se aproximam: o pior do homem não escolhe lugar para se manifestar. Talvez apenas os átomos e as entidades matemáticas, como conceitos e idealidades, sejam isentos do comezinho interesse humano e suas derivações. Mas os que os manipulam, ficamos sabendo com Alice, são gente como a gente.

ALICE

• De B. Kucinski
• Editora Rocco
• 192 páginas, R$ 27,50

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