O presidente Getúlio Vargas e seu guarda-costas, Gregório Fortunato: dois brasis em uma imagem |
A publicação do terceiro e último volume de Getúlio (Companhia das Letras), do jornalista Lira Neto, merece atenção por vários motivos. O primeiro deles é o fato de completar, em alto nível, com direito a informações até então inéditas, a biografia do mais importante político brasileiro de todos os tempos. O biógrafo, no período que vai de 1945 a 1954 abarcado pelo terceiro tomo, traça um retrato vivo dos melhores e mais dramáticos momentos do homem e do estadista Getúlio Vargas.
O suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954, ganha a perspectiva histórica de um político que várias vezes, como se acompanha no livro, teve em mente a ideia de sacrifício pessoal. Muito já se disse do suicídio do presidente, fato que há 60 anos é um marco na história brasileira. Teria adiado o golpe de 64 em 10 anos, rearticulado as forças populares e a oposição em momento de crise, além de estabelecer um padrão político, para alguns ainda vigente na vida nacional.
Ao sair da vida para entrar na história, Getúlio, de certa maneira, reescreveu sua trajetória, permanecendo como um mito. O grande esforço da biografia de Lira Neto foi exatamente dar dimensão histórica e humana ao personagem criado pelo imaginário nacional. O encerramento da trilogia deixa para o leitor elementos para debates que se mantêm na realidade brasileira. Não é um acaso que, quando foi lançado o segundo volume de Getúlio, a edição trouxesse na contracapa depoimentos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. O primeiro se jactou de superar o varguismo, o segundo é visto como um de seus herdeiros. De uma forma ou de outra, Getúlio é uma presença.
O que o livro de Lira Neto em seus três volumes nos ensina é que, sob a capa do mito Getúlio Vargas existia um estadista seduzido pelo poder, mas com sentimento público, que soube responder às provocações de seu tempo, que foi capaz de idealizar um projeto para o país. Mas que não foi homem isento de contradições, chegando ao poder por meio de uma revolução, sendo eleito pelo voto, que apelou para a força de um golpe e de uma projeto autoritário para, novamente, ser eleito alguns anos depois. Por isso não há apenas uma herança varguista, que passaria de mão em mão, mas um patrimônio político dinâmico.
O suicídio, de alguma maneira, funcionou como uma atitude que por sua coragem moral destacou os avanços para relevar os momentos de atraso. A história de Getúlio, no período tratado pela extensa reportagem biográfica de Lira Neto, de 1882 a 1954, representa a trajetória pública do Brasil naquele longo e decisivo período de nossa formação, por meio da inflexão na vida de seu mais importante personagem. É o que garante o grande interesse nos momentos que põem fim à trajetória de Vargas e que ainda ecoam no presente.
Ontem e hoje O segundo aspecto de grande significado do terceiro volume da biografia de Vargas é exatamente esse: sua atualidade. O cenário de crise, os traços de conturbação social, a divisão da sociedade, os interesses em disputa, o presença do Estado, as acusações de corrupção, a emergência do moralismo, a inspiração partidária da imprensa, a discordância acerca do aumento do salário mínimo, a contestação dos direitos trabalhistas – tudo que de certa forma se liga aos momentos finais de Getúlio – são fatos que se repetem com matizes distintos no atual momento político-eleitoral brasileiro.
São problemas semelhantes, mas vividos em outro momento. E que trazem à tona o mesmo cenário de divisão que marca a história política brasileira. O que nos faz, com todas as distinções, herdeiros de questões que parecem insuperadas em nossa tradição política. São várias semelhanças em jogo: a questão do petróleo (que vai da defesa do monopólio aos novos modelos de atuação da iniciativa privada); a remessa de lucros (hoje traduzida no cenário de financeirização que privilegia os rentistas); as acusações de corrupção com acento nitidamente eleitoral; a recrudescência de certa imprensa fincada em propostas moralistas e ideológicas.
Um dos grandes pilares da crise que levou Getúlio Vargas ao suicídio foi o aumento do salário mínimo em 100%. Os empresários chiaram, acusaram o governo de contribuir para quebrar a indústria e, como reação, se aliaram aos setores militares descontentes. Com outro viés, mas bastante simbólico e rico em homologia, foi a declaração de Armínio Fraga, mentor econômico do PSDB, de que o salário mínimo cresceu muito e precisa ser contido. O mesmo argumento é sacado quando entra em cena qualquer negociação salarial, com os empresários jogando contra os direitos em nome de uma suposta “modernidade”. Não há nada na história da humanidade mais moderno que a ampliação de direitos. Mais ainda: que a criação de direitos.
Os debates em torno da eleição deste ano vão trazer de volta vários temas que têm âncora no período getulista. Não se trata de segui-lo ou romper com seu legado. Getúlio Vargas deixou uma herança em termos de projetos (nacionalismo, industrialização e proteção do trabalho), que respondia às demandas de sua época. Mas consagrou um estilo, centralizador, populista e autoritário, que não é viável com a democracia moderna. Há o conteúdo e a forma. Não é mais possível aceitar um em troca do outro. O varguismo está findo. Os problemas do país permanecem. Ler Getúlio é uma boa forma de lidar com os dois lados de nossos dilemas políticos.
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