Os pescadores do Norte de Portugal têm um sentimento ambíguo de vida e de morte perante o mar
Mozahir Salomão Bruck
Estado de MInas: 16/08/2014Caxinas, no distrito de Vila do Conde, no Norte do Porto: destino sempre ligado ao mar e à pesca |
Diz-se sobre o mar: traiçoeiro. Sempre foi assim. E num mundo em desequilíbrio crescente, ele se faz cada vez mais atormentado. Nas Caxinas, a sedução pela força com que o mar se impõe sobre tudo está em toda a gente. No pequeno distrito de Vila do Conde, no Norte do Porto, bem no alto de Portugal, nascer caxineiro é nascer pescador. Há sempre um parente próximo que tem o mar como meio de vida. Como também não há quem não tenha um familiar próximo que não tenha morrido por causa dele. São dezenas de pescadores desaparecidos ou que morreram nas últimas três décadas. Choram-se os mortos, muitos deles perdidos nas ondas e cujos corpos o mar nunca devolverá, mas revolta não há. É entrar, no dia seguinte, nas traineiras e outros pequenos barcos ainda de madrugada e ir atrás do sustento, pois é o mar que dá a vida. É assim nas Caxinas já há quase 200 anos, quando teve início ali uma pequena vila de pescadores, que viviam em pequenas casas de madeira.
“Tem de ser”, diz o pescador aposentado José Marafona, hoje com 61 anos. Conta que, em 44 anos de trabalho, passou a vida mais embarcado do que em terra. “E eu nem quis ir para o bacalhau. Na pesca do bacalhau, ficam-se seis meses no barco e seis meses em terra.” Nascido nas Caxinas, Marafona lembra como começou na pesca ainda garoto, aliás, como a maioria dos meninos de sua idade. “Era uma coisa natural ir ter com o peixe”, explica. “Estudávamos os primeiros anos na escola e depois íamos aprender a pesca.” Diz que começou como ajudante no barco assim que terminou o ensino básico. Frequentou a escola profissional de pesca, e ainda bem rapaz começou a trabalhar em barcos pequenos e, depois, nas traineiras de sardinha. A vida na pesca começa com o aprendiz consertando as redes, cuidando das cordas, lavando os recipientes e limpando os barcos. Mas essa fase é muito curta e logo estará na pesca. O pescador aposentado conta ainda que outro atrativo forte para os jovens quererem a pesca do bacalhau era a possibilidade de ficarem livres do serviço militar – o que dá uma dimensão da importância econômica da pesca àquela época. Ficavam livres do serviço militar com a condição de continuarem no bacalhau, pelo menos, por mais alguns anos.
O sonho de todo pescador é, claro, chegar a armador, o dono do barco de pesca. “De geração para geração, famílias inteiras nas Caxinas se criaram na pesca”, destaca Marafona. “Isso é bom, por um lado, pois mantém a família bem junta, mas, por outro, em alguns acidentes, perdem-se pai, filhos e genros”. Marafona aponta para uma senhora que passa do outro lado da rua do café onde conversamos. “É a dona Maria Célia, acho”, diz reticente. Toda vestida de preto – sapato, vestido e xale escuros, pois em Portugal ainda permanece para muitos o hábito do luto definitivo, ela cruza a rua devagar, em direção à Igreja do Senhor dos Navegantes, que foi construída na forma de um barco pesqueiro. “Ela perdeu de uma vez o marido, que era o mestre do barco, um filho e um sobrinho.” E nas Caxinas as viúvas não são poucas. É uma comunidade de forte presença feminina. As mulheres é que parecem movimentar a vida social. Os homens, quando não estão embarcados, passam o dia ali, na beira da praia, jogando cartas (o passatempo preferido dos pescadores da ativa ou reformados) ou bebendo e falando sobre o mar. E assunto não falta. Prevalece entre pescadores e ex-pescadores, não sem motivo, um discurso de vocação épica. Entre as mulheres, especialmente as viúvas e mães que perderam os filhos, um discurso de vocação trágica. Também não sem motivo.
As mulheres da vila fazem a economia circular e a vida acontecer em todas as suas dimensões |
Peixeiras
Na vida das Caxinas, a história das mulheres é um capítulo à parte. Assumem, em terra, praticamente o restante das tarefas familiares, pois não se restringem aos trabalhos domésticos. Além de cuidar da casa, dos filhos e tocar tudo que diz respeito à casa, cabe a elas, também, limpar e vender os peixes que os maridos e filhos recebem no barco – o quinhão. Praticamente a cada esquina nas ruas das Caxinas há uma delas vendendo carapaus, sardinhas e peixe-agulha. Vez ou outra, até aparece um peixe mais nobre como robalo ou dourada, mas não é comum. No dia a dia, o quinhão, geralmente, reúne peixes mais vulgares, como elas costumam dizer. Dona Bonança vende seus peixes na avenida principal que liga as Caxinas à Vila do Conde. Diz que nas ruas adentro, pelas Caxinas, a concorrência é maior e ali, próximo à rotunda antes da praia, ela já tem freguesia certa. Mas pode ficar por lá uma manhã inteira – pois à tarde já não se vende peixe, que tem que ser sempre fresco – para conseguir 15, 20 euros. Um quarteirão de sardinhas – 25 peixes – custa cinco euros. Nos baldes do quinhão, que os maridos lhes entregam, cabem, geralmente, de 150 a 200 peixes. E vendê-los não é tão fácil assim. Muitas ainda acabam levando peixes para casa.
Sandra Damata é uma peixeira conhecida na comunidade. O que se diz é que os preços que cobra são justos e que o peixe que vende está sempre novo. Ela bem sabe que teve melhor sorte que outras caxineiras que vendem o quinhão em baldes à rua. Membro de uma família antiga de pescadores e armadores, vende a pesca dos familiares em uma banca no mercado municipal das Caxinas. Diz que gosta do que faz, apesar de que o trabalho de limpar os peixes, manter a banca sempre limpa e lidar com o público, por vezes, se torna muito cansativo. E ainda o terrível horário: a vida na pesca começa à noite, com a saída nos barcos, e avança muito cedo, pois há que se receber os pescados e prepará-los para a venda.
Um dos orgulhos dos moradores das Caxinas é que a região se transformou em um centro exportador de mão de obra da pesca. É que além da escola profissionalizante, a própria comunidade caxineira forma, quase que “naturalmente”, novos pescadores. A cultura da pesca e do peixe faz parte e parece modalizar o cotidiano dos moradores. Faz-se presente mesmo no modo de conversar, nas metáforas e simbolismos que usam para falar sobre as coisas da vida. Onde há pesca profissional, é sempre grande a hipótese de lá estar um caxineiro. Daí que, nos últimos anos, a maioria das mortes de caxineiros se deu bem longe de casa, em navios que afundaram nas Astúrias, na Escócia, na Espanha ou no Canadá. “Mesmo no Brasil há muitos caxineiros trabalhando na pesca em Recife, em Natal e em todo o litoral do Nordeste”, diz Marafona que, orgulhoso, diz conhecer o Brasil. “Aquilo ali é um espetáculo. É, sim, senhor”, sentencia Marafona com o melhor sotaque lusitano.
É já entardecer nas Caxinas. Das cinco mesas de plástico da calçada em frente ao bar da praia, apenas duas estão ocupadas. Entre tremoços e azeitonas, o verde branco anima o violonista e o coro desafinado de três homens que exageram no estribilho: “Mar, que és traiçoeiro/ Mar, que nunca tens fim/ Deixa-me viver/ Tens pena de mim”. Pergunto-lhes se sairão no dia seguinte de madrugada para pescar. Eles se riem. Nenhum deles trabalha com a pesca. Mas parecem, assim mesmo, mergulhados nesse sentimento tão ambíguo que se percebe nas Caxinas de vida e de morte no oceano. O mar está dentro de cada caxineiro.
. Mozahir Salomão Bruck é professor da PUC Minas.
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