sábado, 16 de agosto de 2014

De Camões a Saramago - Márcio Almeida

De Camões a Saramago Livro de ensaios de Edgard Pereira analisa autores portugueses clássicos e contemporâneos e ajuda a divulgar uma literatura instigante e ainda pouco conhecida do leitor brasileiro


Márcio Almeida
Estado de Minas: 16/08/2014



O professor da UFMG Edgard Pereira estuda em um dos ensaios do seu livro a escrita errante de Maria Gabriela Llansol

 (Álvaro Rosendo/Divulgação)
O professor da UFMG Edgard Pereira estuda em um dos ensaios do seu livro a escrita errante de Maria Gabriela Llansol


Arquivo e rota das sombras, título consentâneo ao conteúdo revisitado dos ícones que deixaram marcas e são referências para o exercício crítico, lançado na Casa da América Latina, em Lisboa, coloca seu autor, Edgard Pereira, professor mineiro especializado nos cânones lusitanos, definitivamente como um dos melhores analistas brasileiros da literatura portuguesa.

Sem favor algum, mas com base exclusiva no mérito de sua profunda acuidade em analisar com isenção e conhecimento a obra literária proveniente de Portugal. Ajunte-se a essa condição diferenciada e perfeitamente comprovável em todos os ensaios e recensões do livro a consistente erudição com a qual transita o autor opiniões bem-urdidas e interessantes sobre o legado literário português, que é amplo, heterogêneo e específico no contexto europeu de projeção universal.

Assim, tem-se uma leitura abrangente, escrita “com rigor técnico e objetivos hermenêuticos variados”, que inclui Camões e Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Eduardo Pitta, João de Melo, Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Frederico Lourenço, além de muitos outros autores lusos distinguidos em comentários e resenhas que identificam com seus exemplos a rica e emblemática produção portuguesa.

Há que se distinguir no corpus selecionado para abranger as reflexões críticas a elegância estilística deste autor vivenciado em linguagem também como ficcionista reconhecido. Somente com amplo conhecimento da cultura lusitana, aliado a uma vivência in loco realizada quando estudou para seu doutorado em Lisboa, além de dedicação in totum à causa literária portuguesa, poderia fazer lograr um livro imprescindível em significação e importância tal como resultou nesse Arquivo e rota das sombras.

Esse conhecimento, por sua vez, é demonstrado pelo autor no que tem de especificidade a obra portuguesa em prosa e verso, exigindo amiúde incursões na história, linguística, política e leituras múltiplas que sedimentam as pesquisas. Por isso, os textos têm fluidez inteligível, leveza com profundidade, contextos muito bem caracterizados em função de análises que privilegiam a contundência crítica e o ostinato rigore de sua elaboração profissional, enriquecendo muito a visão leiga ou especializada dos leitores mais exigentes.

O tratamento perspicaz e competente de Edgard Pereira conferido em Arquivo e rota das sombras traz, inicialmente, no ensaio “Camões & Pessoa: dois noturnos”, o conhecimento de que o poeta estreou literariamente com um texto crítico sobre a cultura portuguesa, isto em 1912. O ensaio contudo trata especificamente da criação pessoana do heterônimo Ricardo Reis, "de feição helenizante", em condição dialógica com Camões.

Em “Viagens na minha terra: ciladas da representação”, mostra o autor que Almeida Garrett "promove uma surpreendente desarrumação dos princípios norteadores do romance tradicional", enfatizando que o português participou efetivamente dos conflitos entre liberais e absolutistas na primeira metade do século 19, como integrante das tropas de D. Pedro, seu aprendizado para a "memória histórica vivenciada", conforme referida por Homi Bhabha, fato que Edgard Pereira associa à independência do Brasil, em 1822.

A sombra de Fradique Mendes projeta-se numa "tentativa malsucedida de heterônimo" de Eça de Queiroz, em obra situada entre a biografia e a ficção, ensejando um grande romance (A correspondência de Fradique Mendes), que rompe com o naturalismo e vai de encontro à modernidade. O ensaísta desdobra o assunto noutro ensaio em que põe em evidência, também naquele romance, as conexões entre o discurso literário e o discurso cultural, pelas analogias existentes entre "a forma romanesca e a estrutura social", (...) tendo-se em conta "a estruturação homóloga das relações humanas e sua representação ficcional." É destacado, nesse tempo, o interesse de Eça de Queiroz pelas culturas periféricas e o caráter universalista da intelectualidade do autor também de Os Maias e A cidade e as serras, entre outras grandes obras.
A poesia de Camilo Pessanha é analisada no ensaio “O conflito existencial em Clepsidra”, por apresentar síntese das ideias fundamentais e das principais coordenadas formais das poéticas finisseculares, pondo em foco, nessa poesia, as pulsões estéticas do Decadentismo, Impressionismo e do Simbolismo. A importância do poeta está em ter elaborado "um texto à deriva, em movimento incessante, sem rumo, solto, incapturável, por maiores sejam as pretensões da crítica", ressalta o ensaísta. O espelhamento narrativo das personagens, "numa escrita excessivamente decorada de apelos sensoriais, (...) que leva o leitor a tentar decifrar uma construção sofisticada de linguagem, permeada de detalhes preciosos e enigmáticos", justifica para o leitor a análise da novela A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro.

Labirinto

José Saramago tem analisado o romance O ano da morte de Ricardo Reis, no qual o Nobel reelabora a ficção dos heterônimos pessoanos. Saramago, conforme pontua o ensaísta, faz uma leitura da instauração da gênese da múltipla alteridade poética e do fingimento ao distinguir a "sedução do labirinto" que é a produção dos heterônimos de Fernando Pessoa (ele mesmo, Ricardo Reis, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos) e sua influência na cultura portuguesa. Tudo para levar o leitor a observar que em se tratando de Pessoa é dada a "ênfase na ideia de arte como jogo, diferença, corte, vertigem, arte como labirinto". Já para o "estudioso de símbolos", a obra de Saramago conduz ao discernimento de analogias, como a do distanciamento da vida e a condição de desgarrado da pátria de Ricardo Reis, "numa clara insinuação à dúbia relação de F. Pessoa com o Estado Novo português".

A expressão homoerótica está presente também na literatura portugaysa e a obra de Eugênio de Andrade é analisada, destacando-se por a sexualidade possibilitar "o contato com o limite e a transgressão, sua estreita relação com a poesia, linguagem complexa ancorada no simbólico e na subjetividade", tendendo por isso "a direcionar-se quase sempre numa vertente libertária".

Sob a afirmação de que "por mais que se posicione como não-saber, a literatura não deixa de se constituir em uma intensa e fulgurante forma de saber", os Contos do mal errante, de Maria Gabriela Llansol, são analisados no foco do diálogo entre a revolução coperniana e o discurso da autora, ou seja, nas dobras do saber, em conformidade à teoria de Foucault. Numa reflexão ensaística em que é aprofundado o conhecimento sobre as relações humanas, Llansol põe em cena de novo a questão do desvio sexual na literatura portuguesa.

O jovem poeta Antonio Franco Alexandre visitou o Nordeste brasileiro, e fascinado pelo paradisíaco tropical escreveu Visitação, obra analisada por Edgard Pereira "numa atmosfera cultural fortemente permeada pelo pós-colonialismo e pós-modernidade" e pelo arrebatamento no "registro e invenção de uma região marcada pela exuberância, primitivismo e mistura de sensações".

Ao admitir que a relação entre poesia e desconstrução da subjetividade é um dos parâmetros da literatura moderna, o ensaísta informa também que provém da ideia rimbaudiana de que o eu é um outro, donde a arte de Camões, mas também de Helder Moura Pereira "minar a soberania do eu, destruir os pressupostos da personalidade poética (fidelidade, sinceridade, coerência), jogar suspeição sobre o espaço subjetivo", assim como hoje a ideia de subjetividade possibilita abertura "para a alteridade, a pluralidade e a diferença", cuja flexibilidade do pensamento e das pulsões leva, literariamente, "à diversidade sexual, étnica e cultural", transformada em "mútuo consentimento", como é feita a análise do livro lançado por Helder em Lisboa, em 2005. "Cantor do vazio", a reflexão do poeta, segundo o ensaísta, faz com que o sujeito poético assuma "uma postura niilista como forma de resistência", além de Helder dar ênfase à metalinguagem.

São ainda analisados o romancista Vergílio Ferreira, que projeta "o fascínio do silêncio e da escrita"; o poeta Gastão Cruz, que "fez parte de projeto polêmico de valorização da fragmentação sintática e de distanciamento do sujeito na poesia"; Joaquim Manuel Magalhães, "um dos nomes tutelares da poesia portuguesa" através sobretudo de duas recorrências: a consciência da escrita e do sujeito, e da sexualidade vivida mais como prática do que como paixão"; João de Melo, "pela desesperada busca da identidade nacional", autor açoriano reconhecido desde 1988 pelo romance Gente feliz com lágrimas; o escritor moçambicano Eduardo Pitta, que dá um "mergulho na repressão colonial e na demanda da sexualidade como autor de trabalho pioneiro no âmbito dos gay studies em Portugal".

E ainda Miguel Serras Pereira, "uma voz poética original", com o contexto homoerótico libertário sem escamotear a ambiguidade latente entre amor e morte; Luís Filipe de Castro Mendes, "por suas pesquisas de linguagem, ritmo e musicalidade incentivadas por Verlaine" e com interlocução com os poetas do fim do século 20; Fernando Luís, pela revitalização da poesia nos anos de 1970, mormente com o grupo Cartucho, que recusa parâmetros estéticos e questiona: "Contra o quê se tem de fazer a poesia?"; Fernando Pinto do Amaral, que analisa a atual produção poética portuguesa e dá sua contribuição diferenciada também como poeta; Frederico Lourenço, autor de "um relato lucidamente ridículo e austeramente assético em relação às cenas de sexo".

Dos clássicos aos pós-modernos portugueses, Arquivo e rota das sombras amplia com competência a visibilidade leitoral para a literatura de Portugal e consagra Edgard Pereira como um dos mais lúcidos intérpretes críticos dessa literatura.


. Márcio Almeida é escritor e crítico.  E-mail: marcioalmeidas@hotmail.com


ARQUIVO E ROTA DAS SOMBRAS – ENSAIOS E RECENSÕES DE LITERATURA PORTUGUESA
. De Edgard Pereira
. Editora Aldeiabook, 146 páginas

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