Mulheres no poder - Valf
Último aviso, álbum da artista alemã
Franziska Becker, inaugura o selo Barricada, que terá linha editorial
voltada para quadrinhos críticos e com pegada política
Estado de Minas: 16/08/2014 04:00
Jardim do Éden. Em meio a uma vasta vegetação e animais de todos os tipos, o Criador, em tom grave, dá um ultimato. Caso os dois moradores do paraíso não passassem a se comportar direito, sofreriam as consequências de seus atos e seriam punidos. Mas nada de maçã e anjos com espadas flamejantes expulsando-os do paraíso. Como penalidade, um desses moradores seria transformado em homem. Sim. Duas mulheres, Ada e Eva, recebem a reprimenda de uma figura divina, também do sexo feminino.
Último aviso, título do recém-lançado álbum de cartuns e histórias em quadrinhos da alemã Franziska Becker, curiosamente também é o nome desse cartum que serve como capa da edição. É um irônico cartão de visitas da artista, que em suas mais de 120 páginas, percorre com seu olhar feminino/feminista as mais variadas facetas da sociedade e extrai delas uma visão ácida, crítica e bem-humorada.
Nascida na cidade alemã de Mannheim, em 1949, ela foi criada em uma família liberal. Começou seus estudos em um curso de egiptologia. Porém, a pressão familiar a fez optar por uma carreira mais estável e totalmente diferente, tendo concluído o curso de formação técnica em assistência médica. Por fim, acabou entrando para a academia de artes. Politizada, uniu-se a movimentos feministas no começo dos anos 1970.
Em uma das reuniões dos grupos de que participava, conheceu a editora Alice Schwarzer, que viria a fundar algum tempo depois a revista Emma, onde começaria a colaborar desde o lançamento da primeira edição. O nome da revista é uma espécie de redução da palavra emancipation, ou, em tradução livre, liberação. A busca desta emancipação ocupa grande parte do seu trabalho. Seus cartuns, sátiras a convenções sociais e situações do cotidiano ganham força no humor e na crítica quando confrontam o limite e o choque entre os universos masculino e feminino.
Critica a vaidade e a descabida busca do corpo perfeito em uma estória em quadrinhos, numa sequência em que a protagonista, começando ainda adolescente e indo até a idade adulta, ano após ano, continuamente inconformada com a aparência, tenta sempre uma mudança, buscando a grande novidade cosmética e estética revolucionária disponível na época. Cada quadrinho desta procura por aceitação vem sempre pontuado pelo valor da operação ou tratamento envolvido. E, no final, uma busca que acaba se mostrando em vão.
Em outra estória, uma gama variada de ex-namorados problemáticos aparece em uma crônica sobre as desilusões amorosas de uma amiga e traz uma discussão sobre a tentativa do encontro do par perfeito (ou quem sabe, menos imperfeito) e os limites da amizade. Se, por um lado, como já falado, a busca da perfeição física se torna um tormento e é alvo de crítica, por outro o desleixo masculino com a forma é igualmente ironizado.
Em um cartum, duas mulheres conversam sobre uma onda de calor e como ficariam felizes se ela acabasse. Não pela temperatura. Na rua, vários homens fora de forma andam de bermuda, camiseta ou mesmo sem camisa. Despreocupados. Até mesmo com a aparência. Mercado de trabalho, religião, consumismo, tecnologia, criação dos filhos e seus pais de primeira viagem. Todos esses temas são debatidos, passam pelo olhar atento e pelo crivo da artista e ganham o merecido comentário de sua pena.
Está, entretanto, na inversão de papéis, sua melhor crítica. Com maestria, Franziska confronta nossa percepção, deixando uma espécie de riso nervoso no final. Recoloca mulheres em circunstâncias que, normalmente sendo protagonizadas por homens, seriam questões densas, sem a menor abertura para o humor. E assim, em uma espécie de espelho invertido, não só expõe como amplifica o que é engraçado, absurdo ou mesmo patético nas situações.
Em uma estória em quadrinhos, dois enfermeiros conversam. Um deles alerta o outro para tomar cuidado com as possíveis investidas de uma médica e não aceitar carona em seu Porsche, correndo assim o risco de se tornar mais uma de suas inúmeras conquistas. Depois de assediar pacientes e enfermeiros, a médica pede para que um outro médico mais novo a encontre durante o turno da noite em seu escritório, com o pretexto de discutirem questões que poderiam alavancar sua carreira dentro do hospital. Ao fundo, um enfermeiro, aos prantos, desabafa com outro companheiro, contando a ele que a médica havia prometido divorciar-se. E quando um paciente enfurecido ataca a médica culpando-a por um erro de procedimento em uma operação, o comentário de um colega de profissão é que aquele rompante de fúria se devia a algum possível problema hormonal.
A premiada autora alemã (recebeu em 1988 o prêmio Max und Moritz de melhor cartunista da Alemanha e em 2012, pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Göttinger), depois de mais de 20 álbuns, faz sua estreia no mercado nacional, sendo lançada pelo recém-criado selo de quadrinhos Barricada, da Editora Boitempo. Uma excelente oportunidade para conhecer o trabalho da artista e sua peculiar visão, tanto sobre a sociedade quanto a fragilidade de ambos os lados da guerra dos sexos.
ÚLTIMO AVISO
. De Franziska Becker
. Editora Barricada, 126 páginas
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